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Um pedido de desculpas para dores irreparáveis

"Entendo o que eles estão fazendo aqui. é muito difícil uma pessoa bater em sua porta para ajudar"

Filme "A Última Ressaca do Ano"Filme "A Última Ressaca do Ano" - Foto: Divulgação

Em cada porta que se abriu para esta série de reportagens - publicada pela Folha de Pernambuco de hoje até a próxima quarta-feira -, encontramos pessoas atingidas pela violência. Várias vezes atingidas. O socorro que chega pelo Centro de Atendimento a Vítimas de Crimes (Ceav), um dos programas da política de reparação do Governo de Pernambuco, que atende vítimas indiretas de Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLIs). Trabalho essencial, mas desconhecido até dentro da gestão pública.

A reparação é um dos princípios dos Direitos Humanos ao lado da proteção e do respeito ao indivíduo. O serviço é um pedido de desculpas do Estado. Os Ceavs foram criados pelo Governo Federal no início de 2000 e espalhados pelo País durante dois convênios. Pernambuco é um dos poucos que ainda mantém o serviço, que atende, prioritariamente, os municípios de Jaboatão dos Guararapes e Moreno, onde a incidência de CVLIs é maior. Desde 2008, o Ceav passou a ser uma iniciativa exclusivamente estadual, integrada ao Pacto Pela Vida. Neste ano, serão destinados para este fim R$ 702,2 mil, segundo dados oficiais.

Estas histórias lembram que a vida é um simples segundo entre o ser e o deixar de existir. É um momento, um tiro, que separam a presença da lembrança; o reflexo do espelho, da fotografia. Com a violência no roteiro, a dor é irreparável, mas precisa de um abraço, mesmo que somente caridoso. Todos os nomes reais foram trocados por outros escolhidos pelos próprios personagens. As suas narrativas, transcritas com total fidelidade.

A grade é aberta por uma moça simpática que providencia cadeiras e acomoda a equipe do Ceav que chega para mais uma visita. Ela é jovem, entre 30 e 40 anos, tem fala clara e pausada. Recuperando-se da morte do filho mais velho - Jonas, 20 anos -, assassinado ali em frente, diz que precisa deixar o local. Quer livrar o caçula da mesma sina. “Não peço mais nada a Deus porque acho que não sou digna”, diz. E ao escolher o nome para a matéria, justifica: “coloque Ana, ela foi a que mais sofreu na Bíblia”.

Nos poucos metros quadrados da casa sem reboco e sem portas, Ana ceva solidão. É fim de tarde. Sentada em uma cadeira velha, diz que aguarda a praxe do parecer cardiológico para a cirurgia que vai livrá-la de um mioma uterino. Faz quatro anos que ele está lá. Foi a morte de Jonas que levou o Ceav até sua vida e é no programa onde está sua esperança de saúde. “Vocês marcaram, mas eles me trataram mal no hospital”, desabafa ao advogado Bruno. Diz que explicou que tinha hora marcada para consulta, mas o médico não quis saber. E não a atendeu.

A violência que levou Jonas levou também o marido de Ana, único homem que teve na vida, com quem casou antes mesmo de se tornar mulher. Tinha 11 anos, recém-chegada do interior. Era um homem trabalhador, mas “partiu para o outro lado”. “Ele começou a fazer fundo falso de carro. Quando bebia, me batia”, relata. Foram quase 20 anos de casamento. “Meu pai, não conheci. Disseram que foi morto numa briga”. Todos os homens de Ana se foram. Só lhe resta o caçula. Jonas foi enterrado como indigente porque teve os documentos perdidos no presídio. “Eles (o Ceav) arrumaram pra mim o DNA. Quando cheguei lá, o material estava podre. Aí tem que mexer de novo, mas não quero”, lamenta. Durante o tempo que Jonas passou na cadeia, Ana ficou presa a ele. “Passei a ter medo das coisas. Ainda estou, aqui todo dia matam um”. Ela se apega ao curso que o caçula está fazendo, dentro da prisão, onde cumpre medida sócio-educativa por homicídio. É a esperança. “Meu filho errado mesmo era o que mataram; o ‘menor’ é consequência das amizades”.

Ana sabe que o Ceav é o poder público dentro de sua casa, e mesmo que possa culpar o Estado pela violência que lhe atingiu, sabe que o serviço é a única ajuda. “Entendo o que eles estão fazendo aqui. É muito difícil uma pessoa bater na sua porta para ajudar”, diz. Ana não completou os estudos, mas conhece a vida. Questiono se ela sabe o que é ter direitos. “Sei. É coisa difícil. Tem que ter um empurrãozinho de alguém. Só vou conseguir por causa deles”.

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