OPINIÃO

Uma Certa "Divina Comédia" em Novos Tempos de Guerra

"Il Summo Poeta", o florentino Dante Alighieri, por ser ainda considerado o primeiro e maior na língua italiana,  fez mesmo jus ao mérito do "sumo poeta". Sua obra épica "A Divina Comédia" atravessou o tempo e nos seus excertos trouxe à baila alguns valores humanos, vistos por uma viagem poética ao "inferno", "purgatório" e "paraíso". Uma essência temática que, particularmente, leva-me ao entendimento dos horrores relativos a uma guerra, por mais distante que ela possa estar na linha do tempo. Justo a que separa o "dantismo" do velho mundo, daquilo que me parece "dantesco" no mundo atual.

De fato, só algo destilado pela cabeça de um autocrata por formação, que um conflito bélico poderia se dar com esse nível de ameaça à paz e à soberania. Por maiores que sejam as motivações (atuais e históricas) que ponham em campos opostos russos e ucranianos, nada mais inoportuno que esse ataque da Rússia contra a soberania da Ucrânia. Digo isso por algumas notórias percepções:

a) a incapacidade das lideranças (sejam das partes envolvidas ou não) buscarem  como esgotar os recursos da velha diplomacia; 

b) o modo de se ignorar a resistência exercida por uma brutal e longeva pandemia, com todas consequências sofridas;

c) a aprovação (velada ou não) da exacerbação de um maniqueísmo agressivo, que só tem servido para contagiar o mundo com a propagação de mentiras e agressões; 

d) o desprezo que se dá às incertezas que ainda pairam sobre a economia mundial, com o agravante de se produzir ainda mais debilidades humanitárias.

De volta à obra de Dante e dela construir minha análise sobre esse mundo atual de tantas mazelas, preciso antes esclarecer alguns pontos.  Na "viagem ficcionada" do autor nada de focar em algo como a mazela da magnitude de uma Guerra. Nem mesmo sobre o morticínio causado pela pandemia. No entanto, o inferno e o purgatório dos tempos atuais de pandemia e conflitos, exprimem bem o tamanho do caos, entre riscos previsíveis e perdas consumadas. O vislumbre do paraíso naquela obra, de onde vem a expressão "comédia", parece-me inalcançável hoje. Para isso, valida-se aqui o sentido oposto ao conhecido, que se manifesta pelo vigor dimensional do que se convencionou chamar de "tragédia". Assim, a "divina comédia de Dante" surge nos tempos de hoje como uma "diabólica tragédia", cujo protagonismo advém de líderes políticos sociopatas, autocratas e sacripantas. De comédia mesmo, resta o ofício profissional do presidente ucraniano (tratado com todo preconceito) e o lado risível das atitudes de alguns líderes.

Sobre o preconceito, nada mais próximo ao risível. Admitir incompetência para qualquer modo de gestão, simplesmente por alguém ser artista ou comediante, representa uma atitude grotesca. Pior que tudo é ainda agregar um rótulo de nazista, justo para quem tem origem judia e teve seus familiares diretos como vítimas do genocídio do holocausto. Enfim, isso tudo é mero pretexto para esconder o erro estratégico das forças militares russas, de terem subestimado os ucranianos. Seja pela resistência de Zelensky, como pelo voluntarismo civil de inúmeros compatriotas.

Nesse contexto, não menos imprecisas e ridiculas são as demonstrações de neutralidade, ou mesmo, apoio aos agressores. Afinal, violação de soberania é um preceito condenável, que só subestima o valor e sentido histórico da diplomacia. Exercer o poderio e a força por meios violentos, em pleno século XXI, representa um retrocesso humanitário inconcebível e incabível.

Claro que o momento é de ima tragédia anunciada. O dantesco do inferno e purgatório tem sua expressão. Mas, também resta um certo dantismo no ar, porque a ideia da comédia transitou por espaços diferentes. E fez jus ao termo que nos acostumamos, bem fora do paraíso do velho poema. A arrogância se consagrou para algums líderes, embora assumidos através da capa de um "anti- heroismo" ridículo. 

Tristes tempos.
 

* Economista e colunista da Folha de Pernambuco.

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