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BRASIL

Mais numerosas, classes D e E veem país sem diálogo e politicamente dividido

Pesquisa mostra que camadas mais populares estão longe da direita, esquerda e do centro

Foto: Rafael Furtado/ Folha de Pernambuco

As classes D e E se tornaram mais numerosas na última década e já ultrapassam a soma dos outros estratos sociais brasileiros (A, B e C). Pelo volume, o voto desse eleitorado de baixo poder aquisitivo tem potencial para decidir as eleições presidenciais de outubro.

Quando o assunto é política, brasileiros com renda per capita de até R$ 520 consideram que a sociedade continua bastante dividida. Avaliam que não há diálogo construtivo entre quem tem pensamentos divergentes e não se identificam por completo com um dos lados do debate, seja à direita, à esquerda ou ao centro. A chamada terceira via, que busca se consolidar no debate político, tampouco representa uma clara opção de voto para esse grupo.

Essas conclusões fazem parte de uma pesquisa inédita, feita pelo Instituto Locomotiva e obtida pelo Globo, com base em 1.315 entrevistas em 142 cidades distribuídas em todos os estados. Presidente da Locomotiva, Renato Meirelles diz que a queda contínua da renda definirá se essa será uma disputa “mais ideológica ou do arroz no prato”.

— Esta eleição será diferente da anterior, que foi antissistema — analisa Meirelles. — As classes mais populares foram ao paraíso e desceram de elevador ao inferno da carestia. O preço desse tombo pode ser cobrado nas urnas.
 

As classes D/E enxergam que a sociedade brasileira está polarizada: 77% disseram que o país está muito dividido politicamente. Os que dizem não se identificar com nenhum dos lados da política somaram 37%, enquanto 35% responderam concordar “um pouco” com um dos lados. Cerca de um terço (28%) diz que se identifica “fortemente” com um lado do debate público. Quase metade (44%) diz não ter posicionamento ideológico.

Para essa camada da população, a pergunta a ser respondida nas urnas é direta: sua vida melhorou ou piorou? A dona de casa Cristiana Conceição de Lourdes, de 41 anos, não pretende dar seu voto a nenhum candidato. Moradora da comunidade Vila João, no Complexo da Maré, no Rio, vive com o marido, o único empregado, quatro filhos, a nora e um neto. Na casa de cinco cômodos, ainda “no grosso”, com chão de cimento, os oito se espremem “como dá”: as meninas na sala; os dois casais nos dois quartos.

A família sobrevive com o salário de porteiro do marido de Cristiana, de R$ 1.500, e com o Auxílio Brasil, de R$ 400, o antigo Bolsa Família, criado no governo do ex-presidente Lula, pré-candidato do PT à Presidência e líder nas pesquisas de intenção de voto. No começo da pandemia, Cristiana contraiu Covid-19 e, em decorrência dos gastos com remédios, viveu tempos de aperto financeiro. Por 20 dias, dependeu de doações e chegou a reduzir a comida que colocava na mesa para não faltar na refeição seguinte. Hoje, só comem carne no dia 30, data do pagamento. Nos demais, a proteína varia entre salsicha e ovo.

Cristiana não sabe dizer quem é o pai dos programas de complemento de renda. Palpita que o Bolsa Família foi idealizado por Sérgio Cabral, ex-governador do Rio. Sobre o Auxílio Brasil, diz que nem que fosse de R$ 1.600 daria seu voto para reeleger o atual presidente, Jair Bolsonaro (PL).

— Prefiro votar nulo, para ficar com a consciência tranquila. Quando passa a eleição, os políticos acabam com a gente mesmo… — afirma. — O auxílio pode até fazer diferença, mas precisamos de estudo, saúde e emprego. O auxílio o governante pode dar e depois tirar. O restante não.

Cálculos da Tendências Consultoria Integrada mostram que, em 2021, a união da classe D/E era equivalente a 51,3% do país, com 37,2 milhões de domicílios brasileiros, e tende a continuar crescendo neste ano. Esse público perdeu 15% de sua massa de poder aquisitivo, a soma da renda habitual do trabalho calculada pelo IBGE mais transferências, demais auxílios, Benefício de Prestação Continuada, Previdência e outras fontes.

Do ponto de vista histórico, o Brasil teve um um enxugamento da classe D/E até o começo dos anos 2010 e um inchaço da classe C. Com a crise econômica de 2015/2016, houve uma reversão desse processo. Nem mesmo o crescimento do PIB pós-recessão foi suficiente para gerar melhoria de vida para os brasileiros, segundo o economista Lucas Assis, da Tendências.

— Os efeitos mais duradouros da recessão são sentidos até agora. Com a pandemia, o cenário que já não era positivo se agravou. Essa última década, do ponto de vista socioeconômico, foi perdida. O Brasil está mais pobre hoje do que há dez anos — avalia Assis.

O agente de saúde Luiz Francisco Braz Junior, de 43 anos, se diz um dos prejudicados pela derrocada econômica. Morador de Jaboatão dos Guararapes, na região Metropolitana de Recife, ele afirma que sua família desceu um degrau da pirâmide social durante o atual governo. Formado em Geografia pela Universidade de Pernambuco, Junior mora com a mulher e o filho de 13 anos num apartamento próprio e tem renda familiar mensal de R$ 2.300. O único “luxo” que ainda consegue manter é a escola particular do menino, “porque só assim ele vai chegar a algum lugar”.

Junior é ex-eleitor do PT — votou no ex-presidente Lula e na ex-presidente Dilma Rousseff. Na eleição passada, diante das denúncias de corrupção contra o partido, decidiu votar em Bolsonaro. Hoje se considera “gado arrependido”.

— Estou profundamente decepcionado, porque este é um governo que não se preocupa com a população, haja vista o desprezo pela vacina e o descaso com a vida humana durante a pandemia. E tem mais: a quantidade de desempregados, o combate à corrupção, que era uma falácia — diz Junior, que pretende votar no pré-candidato Ciro Gomes (PDT). — Tenho a sensação de que todo mês ganho menos. Hoje em dia, picanha tem até lacre de segurança, eu só olho de longe no supermercado.

A diarista Elza Machado, de 73 anos, afirma que, se a eleição fosse hoje, não votaria em nenhum dos candidatos. Apesar de ter sido eleitora histórica do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), agora vice na chapa do ex-presidente Lula, ela diz não se identificar com nenhum deles.

— Hoje não votaria em nenhum dos dois, não gosto deles. Mas seria menos pior para o país o Bolsonaro do que o Lula, que já foi preso — diz a diarista, que vive em Itapevi (SP).

Elza diz reconhecer que Lula fez um governo “que ajudou os mais pobres, especialmente no Nordeste”. Já Bolsonaro, afirma, “ajudou as pessoas na pandemia com o auxílio emergencial”:

— Mas muita gente que precisava não recebeu.

O sociólogo Jessé Souza, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC) e autor de “A elite do atraso”, explica que as classes D/E são as mais pragmáticas na hora de decidir um candidato:

— Essas pessoas querem saber o que sobra para elas no final desta história. Elas têm fome, necessidades prementes, tudo é para ontem. É diferente das classes C e média, em que são as demandas morais, ou o falso moralismo, que influenciam os votos. (Colaborou Ivan Martínez-Vargas)

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