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Projeto antifacção esvazia papel de estados contra facções e dificulta perda de patrimônio

Proposta está em discussão na Câmara dos Deputados; secretário do Ministério da Justiça diz novo texto pode criminalizar movimentos sociais

DerriteDerrite - Foto: Lula Marques/Agência Brasil

A versão apresentada pelo deputado federal Guilherme Derritte (PL-SP) para o Projeto Antifacção pode esvaziar o papel de polícias e ministérios públicos estaduais em investigações sobre o crime organizado e dificultar a perda de patrimônio dos integrantes de facções, avaliam autoridades que atuam na segurança pública e especialistas na área.

Além disso, de acordo com esse entendimento, o texto abre brecha para a criminalização de manifestações legítimas de movimentos sociais. Secretário de Segurança Pública no governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) em São Paulo, Derrite se licenciou no cargo e voltou à Câmara para ser o relator do texto enviado pelo governo federal ao Congresso. A escolha feita pelo presidente da Casa, Hugo Motta (Republicanos-PB), provocou contrariedade no presidente Luiz Inácio Lula da Silva e em integrantes do Ministério da Justiça.

O parecer de Derrite, apresentado na sexta-feira, não classifica diretamente as organizações criminosas como terroristas, como pleiteavam parlamentares da direita. O texto, no entanto, equipara práticas como domínio territorial, ataques a forças de segurança e sabotagem de serviços públicos, a atos de terrorismo, com penas mais severas, de 20 a 40 anos.

Derrite faz os acréscimos na Lei Antiterrorismo, que hoje só se aplica a ações feitas por "um ou mais indivíduos motivados por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião". Especialistas defendem que as alterações para ampliar o combate a facções sigam na Lei das Organizações Criminosas, como prevê o texto original do governo.

O procurador da República e doutor em direito Vladimir Aras concorda com o endurecimento das punições, mas considera um "problema" a mistura do conceito de crime organizado com terrorismo. Segundo ele, isso pode gerar questionamentos sobre a competência de investigações em curso, entre autoridades federais e estaduais, o que pode levar a nulidades. Investigações de terrorismo, por definição legal, ficam a cargo de autoridades federais.

— Incertezas quanto à competência da Justiça estadual ou da Justiça Federal vão aumentar a demora dos processos e incrementar o risco de que sejam anulados pelos tribunais. Colocar todas as inovações na Lei das Organizações Criminosas não cria essa risco e permite que as facções sejam tratadas como terroristas, quando cometam atos de terrorismo — afirmou Aras.

O promotor de Justiça Lincoln Gakiya, que atua há mais de 20 anos no enfrentamento ao PCC e participou da elaboração do Projeto Antifacção, vai na mesma linha e afirma que o substitutivo de Derrite continua equiparando "na prática" as facções a organizações terroristas. Ele avalia que, caso o texto seja mantido nesses termos, haverá prejuízo para a experiência acumulada em investigações.

— Todas as mais de 80 facções do país passam a ser consideradas terroristas por "equiparação", o que na prática é a mesma coisa. Toda a competência acumulada nos Gaecos (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) dos Ministérios Públicos estaria neutralizada. As polícias estaduais virariam forças auxiliares nas investigações, que seriam coordenadas pelas Forças Federais. Esse é o ponto mais fraco do parecer — disse o promotor.

Os analistas também pediram a retomada do artigo que previa o “perdimento extraordinário de bens”, para os casos em que há a extinção da ação penal por morte ou prescrição.

— Hoje, o patrimônio obtido pelo réu, ainda que ilícito, é mantido com ele ou seus sucessores. Com o perdimento extraordinário, esses bens seriam confiscáveis — explicou Aras.

Na avaliação de estudiosos, o texto de Derrite ainda traz alguns conceitos genéricos que podem acabar criminalizando movimentos sociais. Isso se daria no artigo que equipara a "atos terroristas" a ação de "restringir, limitar, obstaculizar ou dificultar, ainda que de modo temporário, a livre circulação de pessoas, bens e serviços, públicos ou privados, sem motivação legítima reconhecida pelo ordenamento jurídico". De acordo com essa visão, o trecho poderia ser eventualmente aplicado a uma manifestação popular, por exemplo.

— Acho que esse projeto é bastante arriscado, porque numa correta tentativa de tornar mais rígido o tratamento penal das facções, talvez esteja aumentando o risco de perda de competitividade (econômica), intervenções internacionais e a restrição de espaço cívico por parte da população — disse Renato Sérgio de Lima, diretor-presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A menção também provocou incômodo no Ministério da Justiça, o que foi vocalizado pelo secretário Nacional de Assuntos Legislativos da pasta, Marivaldo Pereira.

— Nós ainda vamos detalhar a análise ponto a ponto. Mas, de pronto, nos chama muita atenção o enquadramento de atos típicos de movimentos sociais. Há uma diferença entre barricadas do crime e interrupção de vias. Se um movimento social interromper uma avenida nós teríamos uma situação de equiparação a terrorista. Isso é algo que sempre foi pleiteado pela extrema direita. É lamentável que um projeto como esse esteja sendo tratado de forma tão politizada — afirmou Pereira.

Há ainda a avaliação de que o parecer abre margem para ataques à soberania nacional. Os Estados Unidos, por exemplo, costumam recorrer ao conceito da “extraterritorialidade” para atacar grupos terroristas em territórios onde não têm jurisdição.

— Há uma confusão no projeto. Uma coisa é terrorista e outra são os métodos terroristas. A máfia dinamitou o juiz (Giovanni) Falcone na Itália (que atuou na operação "Mãos Limpas"). Eles são uma organização mafiosa que usou um método terrorista, mas tem motivações completamente diferentes dos terroristas, como Hamas, Al Qaeda etc. Eles fazem negócios com a esquerda, direita, centro, mas só buscam o lucro. Já o terrorismo é violência política com ideologia — afirmou o jurista Walter Maierovitch, ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de S. Paulo e autor do livro "Máfia, poder e antimáfia". — Mudar definições gera confusão, o que cria riscos e brechas contra a imagem do país e a economia.

Os pesquisadores destacam que há, sim, conexões entre as facções brasileiras com organizações terroristas, como o compartilhamento de esquemas de lavagem de dinheiro e a exploração do comércio de drogas e armas. Mas, na visão deles, a mescla de conceitos violaria convenções internacionais e traria impactos à economia do país.

— Crime organizado é negócio. Terrorismo é religião, ideologia e sectarismo com fins políticos. O terrorismo se financia com o crime organizado globalmente, como o Hezbollah na tríplice fronteira do Brasil com o contrabando de cigarros. Mas o contrabandista que ajuda o Hezbollah é um criminoso que está em busca de lucro e deve ser tratado como tal — disse Leandro Piquet, coordenador da Rede Interamericana de Desenvolvimento e Profissionalização Policial da Universidade de São Paulo (USP).

O advogado Pierpaolo Bottini, professor do Departamento de Direito Penal, Criminologia e Medicina Forense da Faculdade de Direito da USP, acrescenta ainda que o sistema penitenciário, onde as facções têm forte atuação e recrutam novos integrantes, ficou fora da proposta:

— A mera equiparação me parece simbólica, assim como o aumento das penas e o endurecimento da execução penal. Sabemos que as organizações criminosas brasileiras atuam e se reproduzem justamente dentro dos muros da prisão, então aumentar o encarceramento não resolverá o problema — disse Bottini. — Afetar o fluxo financeiro das organizações criminosas é o melhor meio de reduzir sua atuação, junto a um policiamento efetivo e a presença do Estado nos territórios ocupados.

Por outro lado, foi elogiada por especialistas a retirada do artigo que diminuía a pena para quem não fosse líder de facção O texto do governo dizia que a punição poderia ser “reduzida a 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), desde que o agente seja primário, tenha bons antecedentes e não se dedique à liderança, à promoção ou ao financiamento da organização criminosa". Derrite removeu essa parte, alegando que se tratava de uma "fragilidade" e "contradição flagrante".

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