Política

Sylvia Siqueira Campos: 'A sociedade precisa encarar o debate e aprender a denunciar o abuso sexual'

A Folha de Pernambuco entrevista nomes ligados à área de direitos humanos e religião.

Ativista de direitos humanos Sylvia Siqueira CamposAtivista de direitos humanos Sylvia Siqueira Campos - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

Tendo como slogan de campanha "Brasil acima de Tudo, Deus acima de Todos", Jair Bolsonaro tem uma ligação estreita com a bancada evangélica e pretende implementar, no seu governo, ações como o projeto "Escola sem Partido" ou a proibição do que ele chama "ideologia de gênero" - o debate sobre educação sexual nas escolas. O embate contra Fernando Haddad (PT), durante a campanha, deixou claro que Bolsonaro irá rechaçar tudo o que considera "doutrinação ideológica". Confira o ponto de vista de Sylvia Siqueira Campos, defensora dos Direitos Humanos e coordenadora da Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong).

Conheça também o ponto de vista do Pastor Eurico sobre o tema

No programa de governo, Bolsonaro promete proibir a “ideologia de gênero” nas escolas, o que, na visão do presidente eleito, seria encarado como “sexualização precoce”. Houve, também, a recorrente menção ao “kit gay” que teria sido proposto durante os governos petistas. O que essa visão representa para a senhora, em termos de políticas públicas?

A eleição do Bolsonaro representa uma agressão aos direitos das pessoas e um ataque às políticas públicas que enfrentam as desigualdades nas dimensões social, econômica, ambiental, étnico-racial e de gênero. A figura de Bolsonaro no cenário politico público e na função mais alta de poder autoriza a violência, o retrocesso no arcabouço legal da garantia de direitos - fruto de lutas populares -, e aponta que a repressão institucional será um mecanismo de gestão pública. Por essas razões, a vida da população empobrecida, mulheres, negras e negros, jovens, indígenas e LGBT estão ainda mais ameaçadas no cotidiano, dentro e fora de casa, no ônibus, no trabalho.

A segurança física e a saúde mental tendem a ficar em constante instabilidade. E isso é um dos efeitos do Estado de exceção. Nós, defensoras/és de direitos humanos, nossa resistência coletiva, é uma ameaça ao plano de Bolsonaro e seus apoiadores. Um estado de exceção, de motivação do ódio, não reconhece o machismo, o racismo e o sistema capitalista como elementos que estruturam a desigualdade.

Ele vincula ao uso da força e coloca a meritocracia como caminho possível para vencer as barreiras. A gente precisa acessar direito como direito inalienável, e não como mercadoria. Por isso a necessidade de um estado que reconheça as diferenças que compõem a sociedade e crie políticas públicas eficazes no enfrentamento às desigualdades, à violência, à pobreza.

A sexualidade e as relações de gêneros são temas importantes no debate porque estão diretamente vinculados à religião, ao formato de famílias, à emancipação das mulheres, à libertação dos homens do machismo, às relações econômicas no sistema capitalista. A sociedade brasileira precisa encarar o debate amplo da sexualidade, da educação sexual, para evitar e aprender a denunciar o abuso sexual cometido por adultos contra crianças e adolescentes. Educação sexual nas escolas evitaria também gravidez na adolescência e ajudaria as novas gerações a construírem relações mais saudáveis.

Outro ponto que é abordado, na pauta educacional, é a proposição do projeto “Escola sem Partido”, alegando que “um dos maiores males atuais é a forte doutrinação”. Qual é o impacto dessa visão para o debate sobre o ensino no Brasil?

Não existe escola sem partido. As relações humanas e institucionais são construídas com base em ideias e ideais vinculados a um desejo específico de como a sociedade deve funcionar. Politizar é diferente de partidarizar. Politizar é construir consciência histórica e ter condições imateriais de mudar o curso da história na reparação de direitos. Mas nada disso interessa à elite política e econômica no Brasil e que estão na base de comando do governo de exceção com Bolsonaro.

O general Aléssio Ribeiro Souto, que integrou a campanha de Bolsonaro, deu entrevista afirmando que a bibliografia das escolas brasileiras deve ser modificada e que assuntos como o “criacionismo” devem ser abordados, além do “restabelecimento da verdade sobre 1964”. Qual o efeito dessas medidas para o sistema educacional brasileiro?

É uma forma arcaica de pensar o desenvolvimento da sociedade e de esconder a verdade dos fatos sobre a ditadura militar que perseguiu e matou milhares de pessoas. O Governo do Brasil instaurou a Comissão da Verdade e reconheceu as atrocidades cometidas pelo Estado, de 1964 a 1985. Isso é importante e necessário para a construção de identidade do povo brasileiro e, assim, fazermos escolhas responsáveis sobre qual sociedade devemos lutar, construir, cuidar. Infelizmente, não houve justiça, e quem cometeu as atrocidades da ditadura saíram ilesos.

Quando um militar fala em criacionismo e verdade sobre 1964, ele pretende embrutecer o raciocínio das pessoas, retirar a construção do pensamento crítico, principalmente quanto à visão materialista de criação e desenvolvimento da história. Isso aumenta a influência da religião na vida pública. Deslegitima a organização popular pelo reconhecimento de direitos, naturaliza as desigualdades e as opressões.

Como a senhora avalia o fato de Bolsonaro ter como lema “Brasil Acima de Tudo, Deus Acima de Todos”, ter feito uma oração, no seu primeiro pronunciamento como presidente eleito, e ter visitado uma igreja, na sua primeira agenda pública, após a eleição?

Uma afronta à laicidade do Estado. A primeira de muitas que estão por vir. O Estado Laico é uma garantia constitucional pactuada na Constituição do Brasil. É uma demonstração de respeito às diversas culturas e cultos religiosos. A religião não deve estar nas decisões sobre o espaço público, definindo os papéis sociais de mulheres e homens, nem impondo regras aos corpos das mulheres.

A imprensa especula sobre a nomeação do senador Magno Malta (PR-ES) para compor a linha auxiliar do presidente eleito Jair Bolsonaro (PSL), numa pasta intitulada "Ministério da Família", que engloba Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. Como o senhor avalia essa construção e que linha o senhor acha que deve ser adotada nessas áreas?

Eu acredito que a gente precisa sair dessa nova ditadura civil-militar para repensar a composição da institucionalidade brasileira, através dos ministérios e outros órgãos de defesa da democracia.

Essa semana a Lei Antiterrorismo, discutida no Senado, passou a tipificar como terrorismo atos relacionados a “motivação política, ideológica ou social” que possam colocar em perigo a liberdade individual. Movimentos como o MST e MTST estariam enquadrados e criminalizados por essa legislação. Que impacto terá essa medida, no governo Bolsonaro?

O aumento direto do cerceamento da liberdade de expressão e religiosa, a desautorização do direito de associativismo, a propagação do medo de construir lutas coletivas, a perseguição a defensores/as de direitos humanos. Com isso, haverá o aumento de violência em diversos âmbitos. O MST e o MST estão na dianteira de lutas seculares, o direito à terra e à moradia. A reforma agrária ampla é tabu no Brasil. Além do mais, garantir o direito à terra é também garantir o acesso a outros direitos, como casa, alimentação, educação, transporte, saúde, cultura. E isso mexe demais com os privilégios de quem detém as terras, de norte a sul, que produzem com agrotóxicos e mantém os trabalhadores em regime de escravidão.

Já o MST tem uma liderança que aponta se tornar a principal liderança da esquerda nos próximos anos, com muita radicalidade na defesa e garantia de direitos. E isso os conservadores não querem, não querem mais um Lula. Só que já temos vários Lulas, inclusive em forma de mulher radicalmente feministas, ambientalmente responsáveis, negras, pobres. Muitas delas têm compromissos com as causas do MST e MTST, conseguiram mandatos nos legislativos estaduais e no a Congresso. Elas terão o apoio de muitas de nós, nossos corpos estão em marcha porque sabemos que não existe vida fora da luta, por isso nossa raiz é consciente, somos sementes e nossa história é de resistência.

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