Política

Viagem à Índia faz 'namoro' de Bolsonaro e Modi engrenar

'Descobri aqui muito mais coisa em comum entre nós: a lealdade, a cultura, a vontade de vencer', afirmou o presidente do Brasil

Presidente Jair Bolsonaro com o primeiro-ministro indiano, Narendra ModiPresidente Jair Bolsonaro com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi - Foto: Handout / PIB / AFP

Se tem um namoro que parece ter engrenado é o do presidente Jair Bolsonaro com o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. No primeiro dia da viagem oficial à Índia, no sábado (25), Bolsonaro disse que já estava com saudades do país. Ao fim de três dias, nesta segunda-feira (27), afirmou estar maravilhado com a Índia.

"Vocês moram em nossos corações. Descobri aqui muito mais coisa em comum entre nós: a lealdade, a cultura, a vontade de vencer", disse Bolsonaro em discurso durante fórum empresarial em Déli.

Os elogios vão além do blá-blá-blá habitual de presidentes em visita a outros países. Depois do ídolo máximo de Bolsonaro, o americano Donald Trump, o indiano Modi é um dos líderes mais alinhados ao manual nacionalista que guia o bolsonarismo.

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Ambos estão sob ataque constante da mídia, são chamados de racistas e intolerantes e apostam em suas propostas de reformas para abrir e desburocratizar seus países para agradar o mercado. Empresários que acompanharam a visita de perto afirmam que os dois líderes tiveram ótima química, apesar da barreira da língua.

Aravind Krishnan, diretor da área de América Latina na Confederação das Indústrias Indianas, maior entidade empresarial da Índia, que observou Bolsonaro e Modi ao longo da viagem e se sentou próximo a deles durante o desfile do Dia da República, afirma que "os dois tiveram uma ótima conexão".

"Modi e Bolsonaro são de direita, têm uma relação cordial com os Estados Unidos, não concordam com uma parte da mídia internacional e doméstica, são muito dedicados às reformas e querem criar um bom ambiente para negócios", diz Krishnan. "Modi já tinha uma relação especial com Trump, Binyamin Netanyahu, Xi Jinping e Vladimir Putin. Agora, terá com Bolsonaro."

Eduardo Bolsonaro, que integrou a comitiva do presidente durante a viagem, também vê muitas semelhanças entre Bolsonaro e Modi. "Eles estão se entrosando muito bem, são duas pessoas notoriamente nacionalistas, defendem seus países, são avessos a alguns foros internacionais", disse.

Os indianos se desdobraram para agradar Bolsonaro. Além de espalharem pela cidade cartazes com a foto do brasileiro e a mensagem de "bem-vindo" em português e hindi, destacaram seus principais ministros para uma ofensiva de charme.

Piyush Goyal, ministro do Comércio e das Ferrovias e um dos homens fortes do governo, foi cirúrgico em seu afago. "Foi a viagem mais produtiva de qualquer presidente do Brasil à Índia", disse ele, em discurso ao lado de Bolsonaro no fórum empresarial. Os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva, Dilma Rousseff e Fernando Henrique Cardoso já estiveram no país.

Modi, por sua vez, chamou Bolsonaro diversas vezes de "amigo" e afirmou ser um "orgulho" tê-lo como convidado no Dia da República.

Houve, porém, críticas e protestos contra o convite ao presidente brasileiro por parte de entidades progressistas e produtores de açúcar, cujos subsídios são alvo de questionamento do Brasil na Organização Mundial do Comércio (OMC).

Niranjan Hiranandani, presidente da Assocham, entidade empresarial que organizou o fórum empresarial no qual Bolsonaro discursou, disse que o brasileiro está criando o tipo de paradigma que os empresários querem. "Estamos extremamente orgulhosos com a maneira pela qual você tem liderado seu país, presidente Bolsonaro. Você é um exemplo de como criar crescimento econômico e inovação", disse Hiranandani, que está abrindo uma representação de sua associação no Brasil.

Enquanto empresários e autoridades econômicas exaltaram o caráter reformista, o chanceler Ernesto Araújo, como de costume, falou sobre a identidade ideológica. "Sob a liderança do primeiro-ministro Modi, a sociedade indiana está se modernizando sem abrir mão de suas tradições, suas raízes e sua essência, sem abraçar os dogmas frios de quem prega um pós-nacionalismo, que diz que as nações deveriam renunciar a seus sentimentos e suas identidades para poder progredir", disse Ernesto. "Justamente o contrário: só aqueles que se reconhecem como nações podem prosperar no mundo, essa é a lição da Índia, e essa é a lição que o Brasil tenta dar ao mundo."

Na reunião bilateral entre os líderes, no sábado (25), Bolsonaro e Modi falaram sobre seu nêmesis -o bilionário George Soros, defensor de causas progressistas. "O Soros atacou nós dois", relatou Bolsonaro, mencionando a conversa.

O filantropo anunciou na semana passada que investirá US$ 1 bilhão (cerca de R$ 4,2 bilhões) na criação de uma rede de universidades para lutar contra os "ditadores de agora e em gestação" e as mudanças climáticas. Soros criticou a atuação do Brasil na área ambiental e acusou os governos de China, Rússia e Índia de autoritários.

Bolsonaro elogiou Modi pela "liberdade religiosa" na Índia, na semana em que o primeiro-ministro indiano estampou a capa da revista britânica The Economist com o título "Índia intolerante: como Modi está colocando em perigo a maior democracia do mundo". "O presidente elogiou a liberdade religiosa presente na Índia, disse que se sentiu confortável aqui, apesar de não ser um país de maioria cristã; ele se sentiu muito bem acolhido, visitou um templo [hindu]", relatou Eduardo.

Modi, no entanto, tem sido muito atacado por adotar medidas consideradas prejudiciais aos muçulmanos no país dentro de um projeto nacionalista hindu.

Para Ernesto, foi devido à "convergência das ideias e das visões" do governo da Índia e do Brasil que os países fecharam 15 acordos bilaterais na viagem. O principal é o de cooperação e facilitação de investimentos (ACFI), que tem como objetivo dar mais segurança jurídica e incentivar investimentos.

Hoje, há somente US$ 6 bilhões (R$ 25 bilhões) em investimentos indianos no Brasil, e US$ 1 bilhão de aportes brasileiros na Índia, segundo o governo indiano.

Além da revisão do acordo de eliminação de bitributação Brasil-Índia, válido desde 1992, que deve ter suas alíquotas atualizadas, outro acordo importante permite a executivos contabilizar o tempo trabalhado como expatriados em suas aposentadorias, o que, para as empresas, elimina a dupla contribuição previdenciária.

Também foi celebrado um memorando de entendimento sobre cooperação de bioenergia para aumentar a produção e uso do etanol no mercado indiano, o que pode aliviar as distorções causadas pelos subsídios do governo indiano ao açúcar. A ideia é fazer com que mais países produzam etanol, e assim o produto se torne uma commodity, ampliando o mercado ao mesmo tempo em que reduz a grande produção indiana de açúcar, responsável por distorcer preços internacionais.

O Brasil, ao lado da Austrália e da Guatemala, pediu abertura de uma investigação na OMC para questionar os subsídios do governo indiano aos produtores de açúcar. O assunto foi debatido por Modi e Bolsonaro, e o indiano pediu a revisão do contencioso na OMC ao brasileiro, que afirmou ter solicitado a Ernesto Araújo para verificar a possibilidade.

No entanto, para o namoro virar casamento, é preciso discutir a relação. Embora alguns acordos sejam relevantes, será necessário mais para fazer o relacionamento deslanchar e atingir a meta de US$ 15 bilhões em corrente de comércio em 2022.

Em 2019, o país exportou US$ 2,76 bilhões e importou US$ 4,25 bilhões. As vendas brasileiras para a Índia são ainda muito concentradas em petróleo (35% das exportações de janeiro a novembro do ano passado), óleo de soja (10%) e açúcar (8,9%). Como comparação, o Brasil teve intercâmbio comercial de US$ 98 bilhões com a China no ano passado.

Um dos obstáculos é o enorme protecionismo da Índia, quarto lugar no ranking dos países com maiores tarifas médias de importação e um dos países que mais sofrem contestações devido a subsídios à indústria e agricultura -estão em vigor 49 medidas compensatórias contra os indianos. A campeã é a China, com 109.

Nas palavras de um integrante da equipe econômica, "perto da Índia, a Europa é Adam Smithlândia", disse, ironizando a liberdade de mercado no país.

No setor industrial, os indianos tampouco são tão liberais quanto Modi tenta aparentar. Exigem de empresas estrangeiras, algumas delas brasileiras, percentual mínimo de conteúdo nacional e transferência de tecnologia para poderem se instalar no país -algo que a OMC condena. Tudo isso pode emperrar um dos fronts mais promissores da relação: a expansão do acordo de preferências tarifárias entre Mercosul e Índia.

Há interesse dos indianos de ampliar o acordo, que hoje se limita a 450 linhas tarifárias, para 2.000 a 2.500 itens. No entanto, não se sabe que tipo de abertura os indianos concederiam a produtos agrícolas, e o setor industrial brasileiro já avisou que só aceitaria negociar redução de tarifas se entrassem na discussão também os subsídios da Índia à agricultura e à indústria.

Além do mais, a Argentina precisa topar, o que está longe de ser provável, dada a mudança de governo.

Por fim, o presidente Jair Bolsonaro causou pelo menos uma decepção à noiva: não cumpriu a promessa de isenção de visto para indianos. O governo indiano ficou bastante frustrado -várias autoridades e secretários indianos mencionaram em público nos últimos três dias o desejo de que a promessa do brasileiro se concretize.

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