Sabores

Brasil na gastronomia: independente, mas nem tanto

Embora o feriado de 7 de setembro relembre a liberdade do Brasil em relação a Portugal, os dois países nunca se distanciaram quando o assunto é comida colocada à mesa

Doces conventuais reforçam o uso da gema misturada ao açúcarDoces conventuais reforçam o uso da gema misturada ao açúcar - Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco

Por mais patriota que o brasileiro tente ser em algumas áreas, a cozinha é o lugar onde ele baixa sua guarda. No mosaico cultural que esboça a nossa gastronomia, abastecida de referências externas, a presença portuguesa forma o sentido de boa parte das preparações servidas até hoje em solo nacional. Por se adaptarem tão bem às condições sociais e tropicais, elas mantiveram os dois territórios unidos, mesmo depois de o príncipe regente, Pedro I, anunciar o fim da colonização, do jeito que a história conta, em 7 de setembro de 1822.

Marco simbólico para o surgimento de um País, que, à mesa, já parecia ter um sotaque em construção. Ora, pois. Segundo os livros, essa influência começou na expedição colonizadora, em 1530, com a vinda de Martim Afonso de Souza acompanhado de colonos e tripulantes abastecidos de materiais agrícolas, sementes de cana-de-açúcar, mudas de plantas e até alguns animais. Isso sem especificar os temperos e frutas que, com o tempo, foram sendo incorporados à cozinha local.

Na chamada ementa portuguesa, escrita pelo antropólogo Luiz da Câmara Cascudo, na “História da Alimentação no Brasil”, ele cita a incorporação de hábitos, como a valorização do sal e, claro, do sabor doce. Também descreve o quanto a mulher portuguesa aproveitava os elementos que já encontravam em solo colonizado, como o ovo de galinha e a banana da terra. “A mão da cozinheira portuguesa deu preço às iguarias humildes, cotidianas, vulgares. Fez o beiju mais fino, mais seco, do polvilho, goma de mandioca, e molhou-o com leite”, relata.

   Gosto pelo açúcar

Mas a terra de Camões sempre foi um território de absorção de outras culturas e isso fica claro, por exemplo, na permanência dos mouros na Península Ibérica por cinco séculos. Nessa composição cultural que se estende ao Brasil, o açúcar é o elemento mais onipresente no decorrer da história. “Quando se fala das sobremesas portuguesas, usamos as referências dos doces conventuais. Mas vamos lembrar que o açúcar não foi descoberto em Portugal. O País soube tirar proveito do mercantilismo e do processo de cultivo e consumação. Então, temos toda a cultura árabe de bolos e doces que chegam junto com eles por aqui”, explica o especialista em gestão cultural e historiador, Gilberto Freyre Neto. "Ainda chamo atenção para os doces cristalizados e as frutas em caldas, que se tornaram tradições pernambucanas", completa.

Ele lembra que essa é apenas uma parte da composição alimentar, que se traduz também na oportunidade de aproveitar a gema do ovo. Em um de seus artigos para a coluna Folha Gastronômica, a escritora e pesquisadora Maria Lecticia Cavalcanti lembrou que as claras eram utilizadas para purificar vinhos ou engomar roupas, e que açúcar e gema passaram a estar presentes em todas as sobremesas, incluindo a fabricação de licores. “Junto a esse açúcar, e trazidos pelos mesmos árabes, chegaram também outros ingredientes que, pouco a pouco, foram fazendo parte das receitas de bolos e doces - amêndoa, anis, avelã, canela, cardamomo, cravo, damasco, gengibre, noz-moscada, nozes, passa, pistache, tâmara”, diz um trecho.

Pastel à moda de Belém

Pastel à moda de Belém - Crédito: Ed Machado/Folha de Pernambuco

   Na mesa brasileira

como Patrimônio Imaterial de Pernambuco, o bolo de rolo encabeça a lista das preparações de influência lusitana. Inspirado no doce colchão de noiva, que é uma espécie de pão de ló enrolado com nozes, a preparação nordestina ganhou ares regionais ainda no século 16, utilizando a goiabada no recheio. É produto que passa longe da nomenclatura rocambole, por conta das inúmeras voltas da sua massa fininha, quase translúcida.

Segundo o empresário Sergio Poggi, da Confeitaria Pernambucana (onde foram produzidas as fotos desta reportagem), são referências que contam o estilo de vida de muitos imigrantes residentes no Estado. “A cozinha sempre foi ambiente de afetividade. Lugar para servir aquela fatia generosa de bolo, acompanhada de café, dando boas vindas à visita. É assim até hoje”, diz ele, que vive o resgate culinário da sua família Monteiro da Cruz, com a doceria aberta há quase dois anos em Apipucos, Zona Norte do Recife.

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“Minha bisavó dizia que os portugueses não conseguiam fazer a massa mais próxima da folhada e começaram a utilizar a massa podre. Nas lembranças, recordo as vezes que, ainda pequeno, eu abria a massa de pastel nas forminhas menores”, conta. Dessa proximidade, surgiu a expertise para lidar com uma das iguarias mais reconhecidas no mundo todo, o pastel de nata, que sua confeitaria apresenta na versão tradicional, sem medo de recheio, e na que se assemelha à produção típica de Belém. Tão procurado quanto o folhado de carne suína temperada com precisão.

   Esses pratos robustos

Fácil mesmo é entender de onde vem tamanho gosto pelos pescados. A localização geográfica e a fartura desse alimento nos dois territórios respondem a questão. “O bacalhau e a sardinha são as nossas lembranças principais. Mas há uma série de outros tipos de peixes que mostram a união dos dois países”, conta o sócio-proprietário do restaurante Recanto Lusitano, Nelson Novaes.

A casa, aberta no Recife nos anos 1980, nunca deixou de lado essas receitas tradicionais, que abusam de azeite, legumes cozidos e pedaços de chouriço. “Uma diferença de hábito é a preferência do nordestino pelo bode, enquanto lá é o cordeiro que aparece mais. Ainda assim, são opções semelhantes”, compara. Quando o assunto é carne vermelha, os cozidos brasileiros, com bastante caldo e pirão, também são fortes lembranças do além-mar, podendo incluir técnicas como a utilização do sangue na cocção. Nesse quesito, leia-se sarapatel e galinha de cabidela - patrimônios regionais com um pezinho na terra dos descobridores.

Eles trouxeram também:
- Coqueiros
- Cana-de-açúcar
- Arroz
- Pepino
- Mostarda
- Especiarias
- Embutidos
- Utilização de gordura para frituras
- Frutas: uva, figo, maçã, melancia

 

 

 

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