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Sabores

Doces feitos de gema e tradições

Lligação do pernambucano com a cultura do seu país colonizador, Portugal, parece ser mais arraigada do que os demais estados brasileiros

Doces Portugueses (1)Doces Portugueses (1) - Foto: Leo Motta/Folha de Pernambuco

A doçaria portuguesa é considerada, por todos os grandes especialistas, como a melhor do mundo. Pela diversidade. Pelo requinte. E, sobretudo, por seu sabor muito especial. Bolos e doces com nomes que nos fazem lembrar a própria dualidade da alma humana.

De um lado, recordações do divino - barrigas de freira, biscoito do Cardeal, bolachas do bom Jesus, bolo divino, bolo do Calvário, bolo de São Vicente, bolo de mel de Santa Helena, celestes de Santarém, creme de Madre Joaquina, delícias de Frei João, hóstia de amêndoa, lampreia de ovos das Clarissas de Coimbra, madalenas do Convento, manjar-do-céu, mexerico de freira, orelhas do Abade, papos-de-anjo, pastel de Belém e de Santa Clara, pescoço de freira, pudim de ovos dos frades do Convento de Alcobaça, pudim do Abade de Priscos, toucinho-do-céu. E, do outro lado, recordações do profano.

Com nome e sabor de pecado - arrufos de sinhá, baba-de-moça, beijos, suspiros, ciúmes, bom-bocado, sonhos de esperança, bolo dos namorados, colchão de noiva, engorda-marido, fatias-de-parida.

Essa doçaria nasceu nos conventos. Daí seu próprio nome - Doçaria Conventual. Por haver, ali, fartura de tudo. Em razão das heranças deixadas por famílias ricas, quase todas com filhas que lá viviam; ou por pecadores, na esperança de merecer redenção para suas almas. Certo é que por conta de tanta opulência, ou pela origem nobre de freiras educadas com o requinte da corte, nesses claustros os doces em nada lembravam o rigor próprio das regras monásticas.

No início, usando mel produzido nos próprios conventos. E depois açúcar, trazido pelos árabes à Península Ibérica. Mais gemas de ovo, entregues pelas vinícolas; que desse ovo, no mercado, aproveitava-se só as claras - para purificar vinhos ou engomar roupas. Açúcar e gema passaram a estar presentes em todas as sobremesas; sendo usados, ainda, na fabricação de licores. Junto a esse açúcar, e trazidos pelos mesmos árabes, chegaram também outros ingredientes que, pouco a pouco, foram fazendo parte das receitas de bolos e doces - amêndoa, anis, avelã, canela, cardamomo, cravo, damasco, gengibre, noz-moscada, nozes, passa, pistache, tâmara.

Era quase uma liturgia. Sendo guardadas, nos mosteiros, essas receitas, como segredos de confessionário. Assim foi até o século XVIII, quando começou o declínio das ordens religiosas no país. Em 3 de setembro de 1759, foram expulsos os jesuítas, com a extinção da ordem em 21 de julho de 1773. Pouco mais tarde, em 30 de maio de 1834, o Ministro dos Negócios Eclesiásticos e da Justiça, Joaquim António de Aguiar, promulgou lei que declarava extintos “todos os conventos, mosteiros, colégios, hospícios e quaisquer outras casas das ordens religiosas regulares”. E confiscando o patrimônio de todas essas ordens. Passou, por isso, a ser conhecido como o Mata-Frades.

Para sobreviver, as religiosas começaram a vender doces. “Fruto essencialmente da habilidade, engenho, ociosidade, rivalidade e riqueza de freiras e noviças”, segundo o escritor e crítico gastronômico português José Quitério. E passaram a transmitir as receitas a quem lhes dava acolhida. Passando esses doces conventuais portugueses, de geração em geração. E permanecendo vivos até os dias de hoje. Agora esses doces chegam ao Recife. Feitos, com perfeição, por Luciana Cavalcanti e Renata Mota, da Fatia de Céu. Elas aprenderam as técnicas em Portugal. E, de lá, trouxeram panelas de cobre, fôrmas, utensílios, sonhos, ingredientes e esperanças.

Passaram então a reproduzir, com critério e paixão, esses doces conventuais portugueses. Compreendendo a importância de guardar sabores e tradições, nestas receitas “de pedigree”, como disse mestre Gilberto Freyre. Que têm história. Que têm passado. Porque “numa velha receita de doce há uma vida, uma constância, uma capacidade de vir vencendo o tempo sem vir transigindo com a moda”. Parabéns Luciana e Renata que nos trouxeram um pedacinho do céu. Ou melhor, uma Fatia de Céu.

Receita de amanteigados com vinho

Ingredientes:

750g de manteiga
25g de açúcar glacé
500g de farinha de trigo
1 copo de vinho branco de boa qualidade

Preparo:

l Bata a manteiga na mão que, previamente deve ser dividida
em pequenas porções, e vá acrescentando o vinho
l Quando a mistura estiver cremosa, junte a farinha, fazendo
uma massa que deve repousar meia hora tapada com um
pano úmido num lugar em temperatura ambiente e escuro,
para que fermente um pouco
l Depois, estenda numa superfície plana, com a ajuda de um
rolo, até o alcance da espessura de 1cm
l Corte a massa em círculos e coloque-os num tabuleiro para
forno previamente enfarinhado, deixando-os repousar toda a
noite cobertos com o pano úmido para que continuem a
fermentar
l No dia seguinte, preaqueça o forno a 200º C e, quando
estiver quente, coloque o tabuleiro
l Quando os biscoitos estiverem dourados, retire-os do forno
e povilhe com açúcar glacé depois de frios

Gemas em abundância

No portfólio da estreante Fa­­tia de Céu, unicamente clás­sicos lusos preparados com abundância de gemas, que dão o tom forte ao creme base da doçaria conventual, açúcar aos quilos, amêndoas e castanhas que dão crocância a caramelos. Inicialmente, as doceiras empresárias Luciana e Renata focam em grandes festas, principalmen­te casamentos. Mas não recusam quantidades a partir de 50 unidades, se solicitadas com dois dias de antecedência. Encomendas maiores devem ter prazos de entrega negociados.

Constam do cardápio de docinhos da grife: doce de ovos, um creme amarelo vivo muito conhecido por rechear a massa da barriga de freira, preparado basicamente com gemas e açúcar, e na versão com laranja, servidos em copinhos transparentes; caramelo crocante - bolotas cremosas com amêndoas e castanha-de-caju crocantes (pralinê); beijo de noiva - também em formato de bolinhas, tem massa de coco com laranja, e cravo; queijada do reino - inspirada na queijada de Sintra, tem base de coco e açúcar, adaptada com queijo do reino e toucinho-do-céu - provavelmente o mais conhecido pelos pernambucanos, com base de farinha de amêndoas.

Em breve, a dupla incorpora tarte de amêndoa e doce de hóstia. São as confeiteiras que também ensinam a receita dos biscoitinhos com vinho, também típicos no país de além-mar, para os leitores que quiserem se arriscar na cozinha neste fim de semana.

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