A fé que enclausura

Atendendo a um chamado divino, homens e mulheres abdicam da vida em sociedade para viver uma realidade paralela, reclusos em mosteiros

Dom André, de 49 anos, que há 27 se dedica à vida contemplativa - Rafael Furtado

Com as duas mãos apoiadas na bengala e sentada na cadeira que tem vista panorâmica do claustro do Mosteiro de Nossa Senhora do Monte, em Olinda, Irmã Mectildes deixa o olhar se perder no jardim. “Bonito demais. A madre tem muito bom gosto para as plantas”, comenta. Aos 94 anos, ela dedicou 63 à vida contemplativa, termo utilizado para nomear o rompimento com a atividade exterior, passando a destinar os dias à oração, estudo e trabalho dentro do mosteiro. Pertencente à Ordem Beneditina, esse é o primeiro templo católico de clausura monástica voltada para mulheres no Nordeste, criado em agosto de 1963 por sete monjas vindas do Mosteiro de Nossa Senhora das Graças, em Belo Horizonte. Entre elas, Irmã Mectildes, que foi a primeira abadessa do local. “As pessoas acham que não, mas é uma vida de muita liberdade. É uma vida muito feliz. E só é possível porque nós somos livres para escolher estar aqui”, explica a atual abadessa, madre Verônica.

O clima abafado que se instalou no litoral de Pernambuco na última semana combina com a paz do mosteiro. Silencioso, o tempo parece não passar. Assim como parece não ter passado para as monjas que por ali habitam e aparentam ter bem menos idade do que os documentos estampam. Estampam também outros nomes. Os mosteiros têm um sistema próprio de funcionamento, que passa por abdicar muitas coisas da vida exterior, inclusive o nome civil. Irmã Mectildes, mesmo, se chama Elza Maria Vilaça Castro. Das sete pioneiras, ela e a irmã Maura, de 87 anos, inseparáveis, são as que restaram no local. “Quando surgiu a ideia de instalar um mosteiro aqui, o terceiro do Brasil, eu vim conhecer com a abadessa de lá, de Belo Horizonte. Mandavam material para a gente ler e eu não lia, porque eu não queria vir”, brinca irmã Mectildes.

“E aí disseram que eu viria. Virei a abadessa. Era um tempo de abertura da igreja, então fundamos este mosteiro com outra perspectiva. Acompanhamos as mudanças do mundo”, falou, enquanto irmã Maura voltava do claustro com um livro de recortes para mostrar algumas fotos antigas. Madre Verônica, a terceira abadessa do local, explica que a ruptura é gradativa. “A candidata sente o chamado à vocação religiosa. Ela vem e conversa com a abadessa e conta o motivo pelo qual quer estar aqui. Passa de 1 a 3 meses vivendo com a gente, fazendo parte de todas as atividades. Concordando com tudo, ela volta para a primeira etapa que é o postulantado. Ela se torna uma postulante. Essa fase dura um ano”, explica madre Verônica, de 52 anos, cujo nome civil é Gilvanilda de Sousa Silva. “Na segunda etapa, que é o noviciado, ela muda o nome. Essa mudança ajuda na transição. É uma cerimônia muito bonita. A abadessa apresenta três nomes, que têm a ver com a personalidade da pessoa, e ela pode escolher. Às vezes a abadessa aceita, às vezes a abadessa escolhe outro dos três apresentados. Às vezes escolhe nenhum dos três e dá outro”, diz, entre risos.

Na etapa seguinte, a terceira, chamada de profecia trienal ou simples, a candidata continua estudando, se preparando para emitir o voto solene. “Essa fase dura três anos, mas pode ser prorrogado, para que ela tenha certeza, se sinta segura. Ao fim desse período, ela emite os votos solenes e recebe uma aliança que carrega o novo nome, a data da consagração e nome do Cristo. Vem um bispo ou um abade para fazer a celebração, não pode ser um padre. Vem a família. E então é feito o voto de estabilidade, para nunca mais sair do mosteiro”, conta madre Verônica. Caso a nova monja opte por sair, é necessário escrever uma carta de próprio punho, que é anexada a uma mensagem da abadessa e enviada para Roma, para o pedido ser apreciado pelo papa. “Claro que a família pode fazer visitas, não muitas, para não dificultar o processo. Também podemos sair para médicos. E as irmãs que estão responsáveis por questões administrativas também saem para bancos, cartórios, entre outros compromissos do tipo.”

As nuances dessa vida são várias. As vestes mudam de acordo com o processo. A abadessa, por exemplo, que é superiora, é a única a utilizar um hábito cinza escuro e uma cruz de madeira pendurada no pescoço. Ela foi eleita por voto secreto, assim como as demais nessa hierarquia. Abaixo dela está a prioresa, que no Mosteiro de Nossa Senhora do Monte é a irmã Maria Regina. Do lado de fora, Severina Menezes de Oliveira. Tem 65 anos e um bom humor marcante. Vinda do Rio Grande do Norte em dezembro de 1981, está há 37 anos na vida contemplativa. “É normal sentir saudade. Anormal é não sentir. Uma das nossas irmãs, certa vez, saiu e deixou um bilhete dizendo que foi visitar a família, que mora aqui perto. Foi e não voltou”, conta, soltando uma gargalhada. “Tivemos que ir buscar. Ela não soube lidar com o momento. Acontece. Aqui nós podemos falar, conversar sobre o que nos acomete. O importante é estarmos bem”, explica.

Ela conta que já viu três desistências de monjas. “Teve um caso também de os pais ficarem vindo, chamando a filha, que estava no processo para entrar. Ela não aguentou e abriu mão do chamado. Foi embora de volta para a família”, lamentou. O mosteiro das beneditinas tem capacidade para receber 32 mulheres, mas abriga 16. “Não são todas que perseveram nesse chamado”, explica Maria Regina. “Esse é o menor número que já vimos”, insiste. “As pessoas acham que as mulheres que vêm para cá estão desiludidas com a vida. Tristes. Não é. É um chamado, que nós aceitamos e obedecemos”, completa madre Verônica.

Estando lá dentro, o dia começa cedo, às 4h20. Às 4h45 é o momento da primeira oração, a vigília, seguida de um pequeno intervalo para que, às 6h50, aconteça a laudes, a segunda oração. Então é celebrada a missa para toda a comunidade. As monjas fazem parte do coro. Logo após a celebração é servido é o café da manhã e as irmãs seguem para um momento solitário, chamado de lectio divina, uma oração meditativa. Das 8h45 às 11h20 elas se dedicam ao trabalho, que vai dos cuidados com o mosteiro à confecção de biscoitos e licores que são famosos em Olinda. “É uma receita que veio com uma das sete monjas que vieram para cá. Ela passou para que faz hoje. É segredo. Uma receita de família”, explica a prioresa. Ao todo, entre orações conjuntas ou solitárias, são cinco. Das 12h30 às 13h15, elas vão para o recreio. Um momento para conversarem. “O nosso estilo de vida é muito silencioso. Então esse momento é para conversarmos. Pedirmos orações para alguém da comunidade, falarmos sobre o que acontece lá fora”, continua Maria Regina. Elas explicam que algumas pessoas que frequentam a igreja e são amigas relatam o que acontece fora.

Das 13h15 às 14h15 elas repousam. Das 14h30 às 16h30 voltam a estudar ou trabalhar. Às 15h15, pausa para o café. Das 16h30 às 17h, uma nova oração individual. Às 17h, mais uma oração em conjunto, chamada de vésperas. Às 18h é servido o jantar para às 19h30 acontecer a última oração do dia, a completas. Depois, caso não haja alguma reunião ou ensaio, as monjas vão para as suas celas, como são chamados seus quartos que contam com um armário, uma mesa, uma pia e uma cama. A internet é limitada, para resolver assuntos indispensáveis. Poucas usam celular, apenas as que estão em postos superiores. Ainda assim, de forma regrada, para urgências.

Neste mesmo formato vivem os monges do Mosteiro de São Bento, também em Olinda. Voltado para homens, o local é um ponto turístico, além de abrigar um colégio, o que faz com que a vida de claustro seja um pouco diferente da vivida pelas mulheres. Muito mais liberta. Sentado na entrada do mosteiro, o Irmão Bento, de 69 anos, vindo de São Paulo para encarar essa vida há 44 anos, conta que se chamava Benedito Pedro Ramalho. “Eu trabalhava como caminhoneiro. Vim para cá direto para o mosteiro, nunca tinha vivido a vida religiosa. Aqui, atuo atendendo aos turistas”, conta. Luis Pedro, abade do local, estava na Bahia cumprindo compromissos religiosos.

Os homens, por terem compromissos para o próprio funcionamento dos mosteiros e igrejas, transitam mais facilmente entre a vida do claustro e a vida externa. “Eu sou formado em educação física, então ensinei na escola. Também ajudo na parte administrativa e desde o começo do mês que estou administrando uma paróquia”, explica Dom André, de 49 anos, que há 27 se dedica à vida contemplativa. “Eu nem sabia que existia o mosteiro, mas vim parar aqui e sou muito feliz. É um mistério. Mas os meus caminhos me indicaram para essa jornada. É um verdadeiro chamado.” Todo o lugar cheira a carvalho. E range com os passos de qualquer um dos 20 homens que moram ali. “A procura por essa vida é bem menor do que antigamente, mas ainda é grande. Talvez por estarmos mais no centro da cidade e sermos mais conhecidos”, explica. “É uma vida feliz. Se não fosse, não seria possível.”