'Minha coisa favorita é monstro' traz força narrativa do terror em HQ incomum
'Minha coisa favorita é monstro', graphic novel assinada pela norte-americana Emil Ferris e lançado pela Quadrinhos na Cia, traz trama policial que brinca com o universo dos filmes B e das pulp fiction
"Minha coisa favorita é monstro", titulo da graphic novel assinada pela norte-americana Emil Ferris é tudo, menos lugar comum. Recém-lançada pelo Quadrinhos na Cia, a publicação já pode ser apontada como uma das melhores no gênero dos últimos anos, e reúne tudo no mesmo pacote: história e narrativa poderosas, arte superelaborada e inventiva, e um projeto arrojado, que custou cinco anos de trabalho e muita sensibilidade para fisgar o leitor.
Estreante no gênero, Ferris, definitivamente, é uma iniciante com status de veterana. Na sua primera incursão pelas HQs, já pode integrar a lista de feras da área, que tem nomes como Will Eisner, Alan Moore e Joe Sacco, grandes mestres dos romances gráficos.
Com 416 páginas desenhadas integralmente com canetas Bic e hidrocor - e encadernado como se fosse uma compilação de folhas de um caderno - a história é contada através de um diário gráfico de Karen, garota de 10 anos. Apaixonada por monstros e artes plásticas, e retratada por si mesma como se fosse um "lobisomem menina", a garota vê o mundo, e os seus habitantes, como um filme de terror, uma analogia bem pertinente a algumas experiências relatadas na história.
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Nascida numa família mestiça, com raízes índias, hispanas e irlandesas, que mora num bairro períferico, numa vizinhança multiétnica, no tumultuado cenário político de Chicago dos anos 1960, a jovem Karin tem tudo, menos uma vida no idílico estilo americano decantado à época, o american way of life.
A trama - que se desenvolve em substratos - brinca com o universo dos filmes B e das pulp fiction - e além do terror tem uma forte vertente policial: no andar de cima onde Karen mora, uma vizinha é assassinada. A garota, que além de "monstra" se considera "detetive", decide desvendar os mistérios dessa morte. E acaba enveredando por outros períodos históricos e dramas existenciais das pessoas que orbitam no seu entorno: ao tentar descobrir quem matou a bela judia Anka Silveberg, a autora nos encaminha para a Alemanha nazista e os horrores do Holocausto dos anos 1930 e 1940. Mais um período marcante do século 20 revisitado por Emil Ferris e sua personagem. E mais conteúdo digno da ficção densa e de qualidade.
Paralisia
Além da força narrativa e estética da graphic novel, ela tem um enredo igualmente dramático por trás. Em 2001, Emil Ferris foi picada por um mosquito e contraiu uma doença conhecida como febre do Nilo, que em poucas semanas paralisou suas pernas e os movimentos da mão direita, que ela usava para trabalhar como ilustradora e designer freelancer. Praticamente incapacitada, decidiu reaprender a desenhar com a mão esquerda, ingressando na School of the Art Institute of Chicago (SAIC).
A HQ levou cinco anos para ficar pronta. Embora seja uma obra ficcional, traz várias semelhanças com a biografia da artista, que se inspirou na própria infância e nas experiências de familiares e amigos. Com bagagem impactante, o livro, entretanto, causou estranheza e não foi inicialmente reconhecido. Antes do lançamento pela Fantagraphics Books, em 2017, foi recusado por 48 editoras.
Mas os que deram cartão vermelho para a autora devem ter se arrependido: a quadrinista foi a mais premiada em 2018, levando as principais categorias (melhor álbum, melhor roteirista/desenhista e melhor colorista) do prêmio Eisner, nos Estados Unidos, e o Fauve d’Or, prêmio do Festival de Angoulême, na França. O sucesso foi tanto que Emil já prepara um segundo volume da obra, que deve ser lançado no próximo ano. Um merecido reconhecimento para uma obra "monstruosa", no bom sentido.
Serviço:
"Minha coisa favorita é monstro", de Emil Ferris
416 páginas; preço médio: R$ 134,90 (versão impressa)// e-book: R$ 49,90
Editora: Quadrinhos na Cia