O filho do desejo
O gosto pelos prazeres de Vadinho acompanha o babalorixá Hamilton Fernandes, que descobriu ser filho de Exu, assim como o personagem
Descendo o Pelourinho abaixo, trocando as pernas de tão bêbado e vindo de um carteado mal sucedido, Vadinho seguia nu em pêlo, sem um tostão, coberto apenas pela benevolência de um amigo, que lhe empresara uma capa. Quem o via passar nas ruas, não tinha dúvidas: um desavergonhado, alcoólatra inveterado, viciadíssimo no jogo e um legítimo filho de Exu, dos porretas. Esse orixá, que rege a cabeça do falecido marido de Dona Flor e que está representado no começo e no fim de todos os livros de Jorge Amado, é muitas vezes caluniado e renegado. "Exu não tem, ou raramente tem, 'filhos'" diz o sociólogo francês Roger Bastide em "O candomblé da Bahia: rito Nagô". "Uma pesquisa efetuada nesse sentido na Bahia ressalta que o número de filhos ou filhas de Exu sempre foi reduzido. Ainda sim, muitos filhos renegam que tenha, mesmo, a cabeça regida por ele", escreve.
Personagens de “Dona Flor e seus dois maridos” no cotidiano
As pessoas e suas relações amorosas se sustentam pelos momentos vividos
À noite, todos os gatos são pardos, qualquer música se dança
Dois Brasis na mesma cama
Não bastassem todos os estereótipos desse orixá, ele não é do tipo que aparece facilmente no jogo de búzios para assumir ser o dono daquela cabeça (a pessoa para quem se joga). Foi por isso que o babalorixá Hamílton Fernandes passou anos pensando que era filho de Xangô. "Eu vivia uma desarmonia nessa relação com Xangô, não evoluía. Muitos diziam que eu tinha cara e jeito de filho de Exu, mas eu não cogitava, até que encontrei o sacerdote Raminho de Oxóssi, que bateu folha na minha cabeça e Exu chegou. Isso faz 14 anos", conta. Por ter sua origem na Jurema - religião onde Exu é compreendido como uma entidade de esquerda, que trabalha na rua, com cachaça, fumaça -, Hamílton se assustou com a revelação. "Pensei: meu Deus, então eu vou viver na rua? Será que esse orixá vai me trazer progresso? Mas fui encontrar dentro da divindade dele, da história, do catiço, da origem, e ele é muito puro".
Vadinho e Hamílton herdaram muito das características mundanas do seu santo: uma virilidade aflorada, a esperteza, o gosto pelos prazeres, são dos que amam forte e fortuitamente. "Tornei-me mais astuto, comecei a ganhar mais vida, tive mais caminhos abertos, perdi medos. E essas são característica do meu orixá, ele me dá força. Exu não faz o mal, te dá a luz que você seguirá e chegará onde quer. Assim como ele, tenho um temperamento oscilante, com momentos mais quietos, em que estou calado, observador, e outros que eu sou totalmente áspero, grito, eu quero agora, eu vou buscar, vá buscar! Há momentos que estou conversando com meu santo, olho pra ele e digo: agora eu quero, porque não tá te faltando nada! Hoje está faltando a casa dele, que já estou construindo. Em agosto, eu estou deitando pra ele".
Bastide
Em "O candomblé da Bahia", Bastide trata detalhadamente dessas peculiaridades que Exu carrega. Em se tratando dele, em um terreiro, não se diz que o rodante (aquele que recebe o orixá) está "possuído" por Exu, mas que o "carrega", "como um grande peso que dolorosamente se arrasta". Tido como um orixá de porte, alguns lugares o identificam como São Pedro, que é o porteiro do paraíso. Os etnólogos que na África se interessaram pela figura de Exu ou por seus mitos o designam pelo termo trickster, e realmente, à primeira vista, parece um ser malicioso que se compraz em brincadeiras, tal como Jorge Amado traz o personagem de Vadinho.
SAIBA MAIS
Candomblé - Jorge Amado ocupou uma das 12 cadeiras do conselho dos obás de Xangô, orixá a que o terreiro Axé Opô Afonjá é consagrado. Ele dizia ser um obá antes mesmo de ser um literato. Há um Exu na porta da Fundação Casa de Jorge Amado, em Salvador
Raminho de Oxóssi - É um dos babalorixás mais importantes de Pernambuco, feito aos dez anos no Pátio do Terço, no Recife, onde até hoje comanda a cerimônia da Noite dos Tambores Silenciosos. É responsável por trazer o culto Jeje para o Estado.
"Bater folha" - Cada orixá tem uma ou várias folhas de fundamento (o lacre de Oyá, a espada de São Jorge de Ogun, sidreira de Oxum, a hortelã de Oxalá...). Bater uma folha na cabeça de alguém é como um ritual de adivinhação, para descobrir o orixá que o rege.