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Saiba o que muda para Hollywood agora que a China bateu os EUA em bilheteria

Com mercado chinês superando o americano, grandes estúdios apelam para a autocensura para agradar ao Partido Comunista

Cena do filme "Mulan", refilmagem da animação clássica da Disney - Divulgação

Não faltaram tendências pairando sobre o universo cinematográfico para a pandemia acelerar nos últimos meses. Blockbusters no streaming, diminuição das janelas de exibição, crise no parque exibidor e, para coroar o ano apocalíptico de Hollywood, a ultrapassagem das bilheterias americanas pelos já crescentes números da China.

Em outubro, pela primeira vez, o país alcançou o topo da lista de arrecadação com ingressos de cinema, superando os Estados Unidos. E não foi só isso. Com o fim de 2020, podemos declarar oficialmente que um filme chinês foi, também com ineditismo, a maior bilheteria do ano no mundo. E, nas primeiras semanas deste novo ano, as produções do país continuam lucrando mais do que as americanas.

Mesmo tendo sido o epicentro da Covid-19, a China lidou melhor com a pandemia e pôde abrandar sua quarentena mais rapidamente, reabrindo salas de cinema enquanto a indústria cultural adoecia em outras potências mundiais.

Ao mesmo tempo em que os chineses voltavam a encarar as telonas, Hollywood buscava soluções para lançar seus principais filmes do ano em solo americano e europeu --e muitos acabaram na telinha.

Esse cenário foi só um empurrãozinho para uma ascensão rumo ao topo das listas de bilheteria e arrecadação que especialistas já previam para a China num futuro breve.

O campeão de bilheteria de 2020, "The Eight Hundred", nem nome em português tem. O épico de guerra ficou praticamente restrito ao público da China --e, mesmo assim, destronou grandes promessas internacionais, como "Tenet".

Mas nem sempre o mercado cinematográfico do país teve um peso tão grande. De acordo com Cecília Mello, professora da Universidade de São Paulo e especialista em cinema chinês, a ampliação do setor vem acompanhando o crescimento da economia chinesa, desde os anos 1980.

A vitalidade e jovialidade do mercado de cinema por lá, ela afirma, contrastam com o declínio que se observa nos Estados Unidos, onde as salas já estavam mergulhadas em crise há muitos anos, o que fez com que muitos estúdios voltassem seus olhos para a Ásia.

Foi seguindo esse raciocínio que a Disney concebeu uma de suas principais apostas de 2020. "Mulan", sobre a guerreira chinesa homônima, foi um fiasco na China em sua versão animada, de 1998. Para o live-action, o estúdio apostou num elenco de estrelas chinesas e fez adaptações para respeitar os costumes do país e aclamar sua tradição militar.

Mas a campanha de marketing encontrou obstáculos muito além do coronavírus. Se o novo "Mulan" estava em sintonia com as autoridades chinesas, por outro lado esbarrou em diversas polêmicas fora de lá. A primeira delas foi quando a atriz Liu Yifei demonstrou apoio a policiais que sufocavam protestos pela democracia em Hong Kong.

A Disney foi rápida em igualmente sufocar a repercussão negativa que as declarações geraram. Com o filme já disponível para o público, no entanto, houve outro contratempo. Nos créditos finais, a empresa agradece a diversos órgãos governamentais de Xinjiang, onde o longa foi filmado. A província estampou manchetes por ser lar de campos de detenção onde uma minoria muçulmana foi confinada.

Com "Mulan" já lançado e visto por muitos, a Disney fez pouco caso e soou o alarme para um vilão que se apodera de Hollywood --a indiferença com a violação de direitos humanos e a autocensura.

"O problema não é que Hollywood está tentando ganhar popularidade com o público chinês, mas que está tentando agradar às autoridades do país", diz James Tagger, do Pen America, órgão que zela pela liberdade de expressão. Em agosto, ele publicou o artigo

"Feito em Hollywood, Censurado em Pequim", sobre o estreitamento de laços entre estúdios americanos e autoridades do Partido Comunista.

De acordo com Tagger, a autocensura se tornou comum nos grandes estúdios, que se curvam às políticas autoritárias e centralizadoras de Pequim para garantir o acesso de seus blockbusters aos cinemas. Controlado com mãos de ferro, o parque exibidor chinês só é autorizado a lançar 34 longas estrangeiros ao ano.

Para garantir uma dessas vagas, estúdios têm incutido em seus principais filmes visões favoráveis ao regime chinês, escalado estrelas locais, gravado no país e até mesmo feito versões editadas dos filmes.

Nos roteiros, eles têm desviado de assuntos controversos, como questões LGBT, eleições, debates raciais e até mesmo fantasmas e viagens no tempo --na China, eles são proibidos por serem considerados um desrespeito ao passado.

Também não é incomum ver membros do Partido Comunista sendo convidados para visitar sets de filmagem, por exemplo, e coproduções entre os Estados Unidos e a China vêm se tornando frequentes.

Richard Peña, professor da Universidade Columbia e ex-diretor da Film at Lincoln Center, concorda que essa involução para a autocensura é preocupante, mas que não é estranha para uma indústria que, como qualquer outra, obedece a uma lógica de mercado.

"Sempre há perigo na autocensura, que muitas vezes pode levar a distorções de vários tipos. Por outro lado, você pode ver isso como a lógica do capitalismo: você adapta um produto aos desejos de seus clientes, e a China é um cliente muito poderoso", diz.
Peña destaca que, na outra ponta do negócio, curiosamente, filmes chineses têm tido um desempenho pífio nos mercados internacionais, como "The Eight Hundred".

Em seu relatório, Tagger afirma que o controle que Pequim impõe aos blockbusters estrangeiros faz parte de uma estratégia de soft power, que visa "mudar a conversa cultural global em direção a uma cobertura mais favorável da China". Por outro lado, os próprios filmes chineses pouco participam dessa estratégia.

Segundo Cecília Mello, da USP, existe tanto uma dificuldade desses filmes em entrar em mercados ocidentais, quanto uma falta de vontade de os promover globalmente. "A China ainda é um país politicamente mais fechado, o que acaba levando a um isolamento que ainda não foi suplantado. Grande parte dos sucessos de bilheteria chineses tem conteúdo nacionalista, voltado para o mercado interno."

Estratégias para entrar na china:

- Coproduções

Estúdios americanos têm firmado parcerias com produtoras chinesas, que investem em grandes blockbusters

- Visitas ao set

Alguns estúdios têm convidado autoridades chinesas para visitarem sets de filmagem, facilitando a adaptação dos títulos ao que é permitido pelos censores

- Temas proibidos

Alguns roteiros escolhem evitar temas sensíveis para os censores chineses, como questões ligadas a raça, democracia, aos LGBTs e até a viagens no tempo e fantasmas, considerados um desrespeito à história

- Aceno à China

Por outro lado, outros roteiros escolhem fazer acenos à China para que os sensores ignorem trechos controversos dos filmes, escalando estrelas chinesas para o elenco, ambientando cenas no país ou retratando seu regime de forma favorável

- Versões editadas

Filmes com cenas consideradas controversas muitas vezes passam por uma edição e ganham versões lançadas exclusivamente na China

- Soft power

Estúdios de Hollywood colaboram para a estratégia de mudar a visão que o resto do mundo tem da China, devido à censura e às violações de direitos humanos, enquanto o país, por sua vez, pouco faz para influenciar o debate por meio de sua própria produção cinematográfica