Sotaques revelam as múltiplas facetas da língua
Cenas de discriminação com sotaques nordestinos no programa Big Brother Brasil reacendem debates sobre preconceito linguístico
Fora da casa do BBB, situações como estas, ou até piores, são mais comuns do que se pensa. Assim como Juliette e Rodolfo, diariamente e nas mais variadas situações inúmeras pessoas são vítimas de discriminação por conta da forma como se expressam. A doutora e professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Siane Gois explica que preconceito linguístico é o julgamento de valor que se faz em relação a determinada maneira de falar, a determinada variante linguística de uma comunidade.
“Pessoas que residem nas regiões mais ricas do país acham que as falas delas são mais belas e organizadas do que as falas das regiões pobres. Quem está na capital acha que os moradores do interior têm uma fala feia, engraçada, errada. E se você vai para o Interior, provavelmente, o falante da cidade acha que moradores da zona rural têm uma fala diferente, estranha, inferior. Isso mostra que o preconceito linguístico é, na verdade, social. O grupo que está em uma situação mais favorecida vai se posicionar de uma maneira preconceituosa em relação ao mais desfavorecido”, fala a professora.
Ainda de acordo com Siane Gois, há inúmeros exemplos para mostrar que se trata de uma questão social. Um dos que ela cita diz respeito ao som das letras “T” e “D”. “O grande problema de todo preconceito é achar que os grupos precisam ser homogêneos e que há um melhor e mais correto do que outro. A gente não vê zombaria de ninguém ao escutar um ‘tchia’, mas há zombaria muito grande se você escuta o mesmo som da letra “T” em palavras como "oito" e "muito". E quem fala assim? As pessoas que tiveram pouco ou nenhum acesso à escola, esquecidas pelas políticas públicas”, complementa Gois.
Além da questão socioeconômica, entre as causas que geram o preconceito linguístico está a condição regional e cultural dos indivíduos, mas a problemática pode ficar ainda maior. Geralmente causado pela ideia de que há apenas uma única língua a ser considerada correta, o preconceito linguístico acaba colaborando para a prática da exclusão social. No entanto, muitas pessoas não levam em consideração, às vezes por falta de conhecimento, que as línguas mudam e se adaptam ao longo do tempo. Em um país culturalmente rico como o Brasil as variantes linguísticas são prova disso.
Alguns especialistas destacam que o preconceito linguístico fruto das questões socioeconômicas pode ser considerado o que promove as mais graves consequências, pois integrantes de classes mais pobres acabam dominando variedades linguísticas mais informais, devido ao pouco ou quase nenhum acesso à educação formal. Por conta deste fenômeno, essa parcela populacional é excluída de seleções de emprego e um ciclo de pobreza é perpetuado. Pais e filhos sem acesso à educação acabam seguindo o mesmo caminho de poucas oportunidades de mudança de classe social.
A atriz recifense Endi Vasconcelos, 31 anos, morou durante nove anos no Rio de Janeiro e sentiu na pele o que é perder oportunidades simplesmente por conta da forma como se expressava. Ela conta que para se sentir e ser aceita nos testes passou a falar com o sotaque carioca. Uma das situações marcantes para ela foi quando uma mulher a orientou a não falar que era de Recife, já que a atriz falava como os cariocas. “Na hora eu achei natural, mas no caminho de volta para casa fui refletindo e percebi como isso é sério porque é a minha essência a forma que eu falo”, comenta.
Endi afirma que ficou abalada psicologicamente ao perceber que o sotaque dela era visto por algumas pessoas como um fator limitante em sua carreira. Diante das experiências que passou ela é taxativa ao dizer que se fosse carioca provavelmente seria muito mais fácil arrumar trabalhos como atriz. “As pessoas acham que ator nordestino tem sotaque muito forte e não vai conseguir fazer outro tipo de personagem, por isso acabam nos jogando para papéis clichês. Acham normal atores do sudeste fazerem o sotaque nordestino, e quase sempre acaba sendo de uma forma bem clichê, mas quando é para atores nordestinos fazerem o sotaque carioca ou paulista para eles é mais problemático”, fala.
A professora emérita da UFPE Nelly Carvalho fala que a discriminação com o modo como determinada pessoa fala pode revelar preconceitos com outras questões. Ela ressalta, porém, que a língua está em constante mudança e por isso não é justificável julgar ou criticar a maneira como alguém se comunica. "A língua não é homogênea, não é imutável. Se você falasse hoje com alguém do século passado com certeza iria perceber palavras e expressões com significados que não se usam mais atualmente, mas nem por isso seriam errados por estarem em desuso”, diz.
Neutralização do sotaque
A doutora em Linguística e professora da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Dilma Tavares Luciano defende que além de um conceito equivocado de língua, soma-se ao preconceito linguístico uma questão social que diz respeito à concepção de direitos humanos. “Qualquer tipo de preconceito decorre de uma concepção não trabalhada de direitos humanos. Já que vivemos em sociedade, todos temos a responsabilidade de refletir, se posicionar e não educar nossos filhos ao plano fundamental do respeito à dignidade humana, que deve ser visto como o primeiro princípio de vida conjunta, de vida comum”, explica.
A especialista ressalta ainda que a escola tem o papel de desenvolver habilidades para combater a discriminação por conta dos sotaques, mas cabe à sociedade como um todo essa responsabilidade. “A escola tem o papel de trabalhar habilidades com relação à língua, habilidade de leitura, levando o aluno a experimentar práticas de leitura que desenvolvam a sua competência leitora no sentido de justamente ser capaz de um pensamento reflexivo crítico que gere a preservação da cidadania”, comenta a professora.
Para Dilma Luciano, é preciso fazer cair barreiras invisíveis que interferem no processo de desenvolvimento social, uma vez que a língua é a forma de expressão do nosso pensamento, das nossas ideias e das nossas emoções. “Eu acredito em uma concepção de ser humano e em uma linguagem humana na mesma forma que Humberto Maturana apresenta quando diz que o humano se constitui no entrelaçamento do emocional com o racional. Parece que a gente não consegue perceber que por mais que queiramos ser e dizer e falar de racionalidade o indivíduo é um ser sócio historicamente situado, então isso se reflete na sua forma de julgar e desqualificar o outro indubitavelmente”, comenta.
De acordo com a especialista em Gramática Normativa Fabiana Ferreira, as diferenças sempre vão existir, porque os agrupamentos de pessoas são múltiplos, as diferenças sociais enormes e regionais também. Mesmo que hoje uma parcela da sociedade esteja conectada via internet, as diferenças persistirão. “Se sabemos que a língua nasce, cresce, passa por infinitas mudanças e morre, entendemos como natural a existência das variações que coexistem durante todo o tempo de sua existência. Por isso, o caminho para que o preconceito seja minimizado é a reflexão insistente sobre esse assunto. Não há língua certa e língua errada; existem múltiplas facetas de uma língua”, defende a especialista.
Atualmente, crianças e adolescentes costumam passar horas consumindo conteúdo na internet e já tem se tornado comum os adultos que convivem com os pequenos perceberem mudanças nas pronúncias de algumas palavras. É como se a população mais jovem estivesse absorvendo o sotaque do sudeste do Brasil, uma vez que boa parte das produções audiovisuais são de lá. Diante deste fenômeno há quem se pergunte se em algum momento haverá uma neutralização dos sotaques no Brasil e moradores das diferentes regiões do país vão falar da mesma maneira.
No entanto, Fabiana Ferreira é taxativa quanto a esta questão. “O famoso sotaque neutro não existe. Muitas vezes, em veículos de comunicação, repórteres passam por uma padronização do sotaque e advinha? Toda a uniformização fica com a carinha do sudeste”, comenta. A doutora Dilma Luciano tem uma opinião semelhante. “Com a globalização e intensa exposição através dos artefatos digitais de informação e comunicação com produtos gerados por falantes com determinado padrão prosódico vai causar um efeito em todas as variedades regionais do nosso país. No entanto, não acredito que vai neutralizar, mas transformar em outra coisa. Sempre foi assim. A língua portuguesa falada hoje em Recife não é a mesma da falada em 1920”, compara.
Traumas
Além das consequências socioeconômicas, quem sofre preconceito linguístico pode desenvolver algum trauma psicológico, podendo ter dificuldade de socializar ou até mesmo problemas de aprendizagem, sobretudo se a vítima dos comentários e atitudes infundadas forem crianças e adolescentes, de acordo com a psicóloga Miryam Azoubel. “Nestas faixas etárias, a personalidade ainda não está formada e fica mais fácil a pessoa se desestruturar com este tipo de bullying. Aí ela fica fragilizada e pode acarretar ansiedade, isolamento social, desenvolvendo até depressão e/ou distúrbios”, explica.
A psicóloga afirma que também é importante tentar entender porque algumas pessoas desenvolvem tais comportamentos. “Segundo Freud, existe um mecanismo de projeção que de certa forma explica. A pessoa vê no outro características dela, mas que não se enxerga assim, não gosta e não se aceita como tal. Então, é mais fácil xingar, ver questões negativas e exercer esse preconceito no outro para não se ver dessa forma. Só que este é um mecanismo de fuga e está no plano do inconsciente. Ou seja, algumas vezes, a pessoa não se percebe exercendo esse comportamento nocivo sobre o outro”, acrescenta.
Na opinião de Miryam Azoubel, a família também tem papel importante no combate destas atitudes. “É preciso ensinar desde cedo às crianças que a diversidade cultural existe, é necessária, bonita e rica. É muito importante a gente ter consciência do que faz, do que se sofre para não repetir esses comportamentos preconceituosos de nenhuma natureza e especificamente sobre esse tema linguístico porque, neste caso, não existe certo ou errado”, comenta.
Reação
Para a jornalista e doutora em Ciências da Linguagem pela Unicap Leusa Santos, um aspecto que chamou atenção nesse debate foi a reação dos grupos que a priori seriam os oprimidos. "A gente vê que historicamente e estruturalmente o falar nordestino vem sendo alvo de preconceito, sobretudo, por parte de pessoas do eixo sul-sudeste do Brasil. A neutralidade do sotaque é muito mais exigida ao nordestino. Mas hoje percebemos uma perspectiva de reação desses grupos, ou seja, passamos a ter grupos de empoderados, que não aceitam mais essa tentativa de opressão e serem discriminados", comenta.
Na análise da jornalista, também entra nesse debate o fenômeno das redes sociais, que veio para ficar em vários setores, contribuindo para o bem e para o mal. "Essa exposição que vemos nas redes sociais de quem eu sou, o que eu faço, como eu falo, de onde eu venho contribuiu para o bem. Há esse empoderamento que foi muito impulsionado assim como outros grupos que estão protagonizando as suas falas, como os negros, os LGBTQIA+, as mulheres. Esses grupos, chamados de minorias por virem de um passado de opressão, estão ganhando voz graças às redes sociais que impulsionam essas falas que se inscrevem em uma perspectiva de reação", acrescenta.
Leusa Santos ressalta ainda que existem dois movimentos a serem considerados. "Um é do grupo que está sendo oprimido e precisa continuar lutando, protagonizando a situação, mas há uma perspectiva sociológica mais complexa. Os organismos de poder precisam enxergar a importância de incluir todos no processo social de forma igual. Infelizmente isso não acontece e ainda estamos longe de chegar a isto, pois depende da vontade política de colocar o outro na perspectiva de protagonismo. A gente, enquanto atores sociais que defendem essa causa, tem que continuar gritando e é dessa forma, dizendo que não vai deixar de abrir mão do nosso sotaque porque alguém de determinada região não acha apropriado", afirma.
Na concepção da advogada e presidente da Comissão de Direitos dos Refugiados da OAB-PE, Emília Queiroz, uma forma de enfrentar e combater o preconceito linguístico é por meio da valorização cultural. "Existe esse preconceito nacional em relação ao Nordeste sem se levar em consideração que a região é uma grande produtora de riqueza para o Brasil. É preciso levantar a autoestima do nordestino para que ele tenha orgulho do seu sotaque assim como os sulistas têm", comenta.
A advogada explica que é difícil tipificar como crime o preconceito linguístico porque em muitas ocasiões as situações são sutis, mas a ofensa pode ser configurada em outros crimes, como injúria. "Se possível procure primeiramente um advogado, seja defensor público ou particular, para que ele possa analisar o caso e orientar a respeito da colheita das provas. Ainda existem barreiras atitudinais na força policial. Como é uma questão muito específica que não existe uma cultura tão grande de ser imputada às pessoas no Brasil, como precisa aprofundar mais para ser apurado, a melhor indicação é procurar ajuda profissional antes de ir à uma delegacia", orienta.