Opinião

A religiosidade de Clarice Lispector (1ª parte)

A inteligência e a sagacidade caminham em paralelo com Clarice Lispector. Sabendo-se mulher, judia, imigrante soviética (Ucrânia, na época). Entrou no Brasil pelo Nordeste. Assumiu sua nordestinidade adotando Recife, como a sua terra. Aqui viveu sua infância e parte da adolescência até aos 14 anos, o suficiente para orgulhar-se da cidade.

Morou na Maciel Pinheiro, casarão que, finalmente, foi tombado. No país ser mulher era ser do lar. Clarice fez direito. A profissão de jornalista era menos preconceituosa, mas ser escritora no Brasil era enfrentar barreiras. Desde a Academia Brasileira de Letras que não aceitava mulheres dentre os seus membros. Lispector viveu estes tempo. Mas ainda acompanhou à distância a posse de Rachel de Queiroz, a pioneira feminina na ABL, em novembro/77, um mês antes da sua morte.

Clarice Lispector foi casada com o diplomata Maury Gurgel Valente e depois se separou. Com dois filhos, Pedro e Paulo. Naquela época mulher desquitada era estigmatizada. Devo lembrar que o governo de então, Getúlio Vargas, não era simpático à causa israelita. CL ainda tinha o que se chama língua “presa” (anquiloglossia) o que fazia muitos pensarem ela ser estrangeira com sotaque francês.

No Brasil até hoje, quem sabe o que é preconceito é o negro, é o pobre, é o judeu, é o imigrante chamado de gringo ou turco, é o nordestino. Este, sobretudo, no Sudeste. É o baixinho. São as nossas idiossincrasias. Este preambulo é para justificar que entendo a astucia que Clarice Lispector fez para que ela não assumisse a sua religião judaica, ostensivamente.

Desde cedo, acredito que ela sofreu bullying, aqui em Recife. A garota do seu conto “A Felicidade Clandestina” ao negar-lhe emprestar o livro, praticava uma espécie de bullying. E, deduzo que na sua infância e adolescência, ela decidiu que assumir-se religiosamente judia poderia ser uma barreira intransponível perante a cultura brasileira. Era preciso muito sacrifício e tolerância. Daí ser indispensável uma sagacidade singular para ter sucesso, como Clarice teve e tem. Inexoravelmente.

Ela era muito astuta. Sabia que se assumido o judaísmo, poderia impedi-la de ter um maior e amplo acesso à sociedade e à intelectualidade. A crítica poderia ser mais severa e impiedosa. Lispector era uma gigante. Hermética. A ela não faltavam perspicácia, objetividade e sabedoria.

Confesso que li todos os seus contos, romances, crônicas e entrevistas. Quase toda a sua obra. Clarisse Lispector cita igrejas, templos e catedrais. Nunca, refere-se a uma sinagoga. Jamais usa a saudação Shalom, cumprimento tão comum entre os judeus. Em seus relatos, ficções, narrativas, jamais criou uma oportunidade para, numa sexta-feira à tarde, um judeu dizer para o outro: “Shabat shalom”. Clarice fala em missas dos católicos e cultos para os protestantes, mas esqueceu dos “Cabalat Shabat", serviço religioso judaico celebrado às sextas-feiras, no princípio da noite.

Corretamente, Clarice comemora e brinda o Ano Novo, mas jamais cita o “Rosh Hashaná”, o Ano Novo judaico que é muito mais reflexivo do que festivo. O que dizer do “Yom Kipur” (Dia do Perdão), a maior data do calendário judaico que CL esqueceu em toda a sua obra? Nunca citou a Seder, a ceia judaica. No Natal, ela escrevia contos. Distribuía presentes.

Ela nunca encontrou uma maneira de citar Moises, a líder Rainha Esther, grandes personagens judaicos. Mas, Cristo sempre tinha espaço. Eu entendo Clarice e não a critico. Ela tinha de conquistar o leitor. Para que desprender energia? Omitir não comprometia a grandiosidade da sua obra.

Em quaisquer das circunstâncias, não é fácil abordar o tema religião e no caso de Clarice Lispector quando a sua sensibilidade mais do que aflora, é tudo muito vasto para sintetizar. CL é muito densa. Antes em outros veículos, mas aqui na Folha desde 2007, esta é a segunda vez que subdivido meu texto. São exceções que só uma Clarice Lispector justifica e por isso, peço licença aos meus poucos leitores para aguardar a segunda e última parte desta crônica, para muito em breve.



*Empresário e jornalista
frupel@uol.com.br



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