Opinião

Vergonha alheia

O sofrimento de angústia ou constrangimento ao ver outra pessoa passando por ridículo, ou ignorância sem perceber, chama-se sensação de vergonha pelo próximo, ou “vergonha alheia”.

Os brasileiros têm experimentado essa situação, que os estudiosos da neurociência explicam como sendo “a experiência de adaptar a si próprio, inconscientemente, o sentimento de medo, alegria, tensão ou vergonha, que esteja sendo experimentado por outra pessoa, em muitos casos sem que a mesma perceba”.

Há poucos dias fomos surpreendidos quando o representante maior do País deixou de comparecer à reunião global de máxima importância para discutir a emergência climática do planeta, tema em que somos responsáveis e corresponsáveis de peso incomensurável, preferindo unilateralmente gozar de alguns dias mais prazerosos na região, na companhia do grupo de fiéis seguidores oficiais, na certeza de que a presença no importante evento, além de representar risco de “apedrejamento”, como declarou o vice-presidente da República, a ausência poderia perfeitamente ser suprida por declaração a ser lida após o importante encontro, bastando aderir às principais decisões do grupo de países participantes da COP26.

Considerando que a essa altura dos acontecimentos, nada, absolutamente nada, deveria nos espantar quanto ao perfil ou estilo da gestão dessa quadra por que passa o País, outrossim amargamos as consequências dos atos, falas e atitudes dos nossos representantes, nos apequenando tanto no plano interno, quanto principalmente no cenário internacional, nos restando apenas o sentimento de “vergonha alheia”, evidenciando o deslumbramento, a cegueira da vaidade ou a ignorância, que no jargão popular enseja a observação de que “quem nunca comeu melado, quando come se lambuza”.

No entanto, quase como compensação à vergonha e constrangimentos a que fomos submetidos por terceiros, no périplo rocambolesco, coincidentemente nos últimos dias, levamos ao pódio da cultura, para orgulho dos brasileiros, o cantor e compositor Gilberto Gil e a nossa diva maior Fernanda Montenegro, transformados em imortais pela Academia Brasileira de Letras, reconhecidos internacionalmente pelos seus currículos, pela competência profissional, tanto na dramaturgia como também como escritora, guardiã e referência da desprezada cultura nacional, apedrejada pelos devotos da ignorância, da estupidez, da inépcia e tantos outros adjetivos, banalizados pelo uso e prática rotineira dos protagonistas do chulo e do vulgar.

Ainda é tempo de tentar limpar a imagem, fazendo um derradeiro esforço pela remissão dos pecados, utilizando-se dos instrumentos que o efêmero poder colocou à disposição, para facilitar a identificação dos sucessores com reconhecidas condições de dar conta do recado, na difícil missão de reconstrução nacional, com o concurso de “gregos e troianos” irmanados, sem a exigência de contrapartidas veladas ou explicitas senão daquelas que ainda restarem dos nossos parcos recursos, para mitigar o desespero, consequência do desemprego em massa, da sociedade dividida, desorientada, sem saber se vai morrer de Covid, de decepção ou de fome mesmo.

Não podemos nos esquecer de três outros expoentes de nosso ativo cultural, consagrados nas justas homenagens e reconhecimento a esse lado bom do Brasil, com seus legados personificados pela cantora Marília Mendonça, pelo pianista Nelson Freire e a jornalista Cristiana Lobo, que a exemplo de Fernanda Montenegro e Gilberto Gil também são imortais, pois a despeito de terem partido precocemente, estarão sempre vivos na memória nacional.

Isto posto, no contexto da “vergonha alheia” preocupa-nos o desconforto semelhante ao das vítimas de “apropriação indébita”. Ninguém pode dizer ou fazer o que quer que seja no País sem nosso consentimento, à revelia do Estado Democrático de Direito. O Brasil tem dono, que somos todos nós, com escritura passada, consubstanciada na nossa Carta Magna.


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