ESPECIAL FREVO, TRADIÇÃO EM MOVIMENTO

Gerações aprendem a perpetuar e pavimentar o futuro do movimento cultural

O frevo segue pulsante e se perpetua através das novas gerações - Isabella Valle / Divulgação

O nascedouro de uma tradição é sempre a novidade. E quando se trata de uma manifestação tão recente como o frevo - 115 anos é um sopro quando se trata de cultura - a inovação é constante. Capiba, Nelson Ferreira e os grandes mestres do passado surgiram como visionários do seu tempo. E cada geração aprende, no presente, a dar passos para perpetuar e pavimentar o futuro do gênero.

“Nessa relação de tradição e inovação ou tradição e contemporaneidade, não vejo uma relação de dualidade ou de competição. Vejo uma relação de continuidade e fortalecimento dessa expressão. Porque nós não vamos fazer nada de inovador, de contemporâneo se a gente não estudar o que veio no passado. Respeitar essas tradições dos mestres e mestras, das agremiações que fazem o frevo, é contribuir para que ele continue pulsante, tocando outras pessoas e impulsionando o universo do frevo”, pontua Luiz Santos, gerente de memória e exposições do Paço do Frevo.

Choque e encontro de gerações
Maestro Spok, nome artístico do músico, compositor e arranjador Inaldo Cavalcante de Albuquerque, um dos artistas que reposicionou e ajudou a levar o frevo pernambucano para além das nossas fronteiras, encontrou ressalvas dos maestros tradicionais quando incluiu influências do  jazz e apresentou o frevo em grandes palcos de música instrumental.

“Mesmo quando a gente subia no palco no Carnaval, já ouvi vários mestres dizendo assim: ‘vamo simbora todo mundo que chegaram os americanos’. Hoje um pouco menos, mas ainda há uma resistência e não é nada fácil. Mas eu encaro numa boa. Entendo totalmente o olhar deles e a importância para com a manutenção e a salvaguarda da pureza de toda a história. Só penso e imaginamos outras ruas, outras pontes e possibilidades, mas tudo é necessário”, opina.

“Há os que tentam, lutam e batalham pelo poder puro da história e nada contra aqueles que tentam abrir e colocar novas cores nas coisas. Contanto que a alma do frevo esteja forte e presente, não pode ter prisão”, relata Spok. 

“Se há 20 anos atrás nós conseguimos abrir e colocar novas possibilidades de liberdade para com a execução e o fazer do frevo, imagine essa nova geração. Orquestras que surgem como a Malassombro, que vem com um trabalho não só poético, mas instrumental também, com as harmonias. É importantíssimo para a saúde do frevo. Orquestras que surgiram agora e têm uma importância maravilhosa”, aponta.

Maestro Spok levou o frevo pernambucano aos grandes Festivais de Jazz pelo mundo | Paullo Almeida / Folha de Pernambuco

Francisco Amâncio da Silva, o Maestro Forró, é outro artista inquieto que trouxe uma novidade para o frevo e também enfrentou algumas barreiras. “É claro que quando se tem uma mudança e sai do convencional, sempre há uma estranheza. Eu lembro que houve uma grita geral dos tradicionais E não apenas dos tradicionais, para a minha surpresa, naquele momento haviam pessoas e gente da área que apesar de serem mais jovens e pessoas que se diziam vanguardas, quando olhou disse ‘isso não é frevo, não’”, comenta Forró. 

O jeito irreverente de Forró reger a orquestra, performando, misturando linguagens e ousando nos figurinos 9muitas vezes tocando de bermuda, óculos escuros e paletó), logo foi melhor assimilado pelos mais antigos. “Agradeço muito ao universo porque com muito pouco tempo - acho que menos de um ano - as pessoas foram enxergando e entendendo. A gente foi se credibilizando. As pessoas da Academia viam que apesar dessa comunicação e alegria, tinha a parte acadêmica”, conta. 

“Eu comecei a ganhar concursos promovidos pela Prefeitura. Eu me lembro que uma figura da geração mais antiga, o maestro José Menezes, por exemplo, que foi o primeiro da geração dele a criticar. Mas foi também o primeiro da geração dele a dar as mãos e dizer ‘menino, agora eu estou entendendo. Eu escutei o frevo que você ganhou o Prêmio da Música Brasileira e esse frevo ninguém faz se não estudar’”, relembra.

“José Menezes começou a me incentivar e eu fiquei super feliz. Não só ele, como tantos outros que me incentivaram como o Maestro Ademir Araújo. Inclusive fiz um frevo misturado com chorinho chamado “Formigueando”, em homenagem a ele”, conta Forró. 

Maestro Forró criou um jeito irreverente de reger sua Orquestra Popular da Bomba do Hemetério | Paullo Almeida / FolhaPE

Novos desbravadores
Com a geração que veio depois de Spok e Forró, também houve resistência. O arranjador e multi-instrumentista Henrique Albino relata o estranhamento dos tradicionais. “Tem alguns maestros que gostam, outros que não gostam mas a gente tem que pegar essa questão do gosto e colocar de lado. (...) O jazz é extremamente amplo por conta disso. E é por isso que ele está em todos os lugares. O frevo para conseguir se abrir e ficar universal precisa começar a pensar que existem várias formas de tocar e de se pensar”, reflete.

“Alguns maestros criticam dizendo que o que eu faço não é exatamente frevo de rua, é um outro tipo de frevo. Alguns levantaram essa questão dizendo que é ‘frevo livre instrumental’, frevo ‘não sei o que lá’. E eu discordo respeitosamente. Porque acredito que o frevo de rua não é necessariamente o frevo na rua. Ela pode ser feito no palco”, opina.

“Por exemplo o jazz é extremamente amplo por conta disso. E é por isso que ele está em todos os lugares. O frevo para conseguir se abrir e ficar universal, precisa começar a pensar que existem várias formas de tocar e de se pensar frevo”, aponta Albino, que foi criado e formado nas orquestras e blocos de Carnaval de Olinda.

O arranjador e multi-instrumentista henrique Albino | Foto: Divulgação

“Acredito que como ainda não se definiu de maneira formal o que é o frevo - ele é muito místico ainda - ainda tem esses impasses. Mas creio que em pouco tempo isso vai ser resolvido”, prevê Albino. "O frevo é tradição e modernidade, porque como ele é muito novo, cento e poucos anos, a gente tem até dificuldade de considerar tão tradicional como as pessoas querem dizer que é. Tradicional é a arquitetura chinesa, que tem milhares de anos”, compara. 

"A gente é uma cultura muito jovem ainda. A gente precisa reconhecer isso e aproveitar que é uma cultura jovem e construir ela com as nossas mãos. (...) Não existe dono do frevo. Isso é um absurdo. Todo mundo que é pernambucano, que ama o frevo e quer fazer o frevo da melhor forma possível, que realmente tem responsabilidade para criar aquilo ali, faz o frevo e a tradição não tem dono, ela é uma comunidade. E a comunidade afirma e reafirma o que vai acontecer no próximo passo. Então enquanto houver uma comunidade fazendo o frevo de uma forma mais antiga e enquanto houver uma comunidade fazendo inovando no frevo, o frevo vai estar sempre caminhando”, aponta. 

“É importante aprender com o que veio antes porque o frevo nasceu, ele tem uma origem, uma raiz e a gente precisa estar com os pés nela para aprender. Mas a gente não pode ficar morando só na raiz. A gente tem que ver o que tem no resto dessa árvore aí. O frevo não é uma macaxeira que só cresce para baixo e tem bem pouquinha árvore pra cima. o frevo é uma árvore gigante que tem uma raiz super profunda e vai subindo infinitamente e a gente vai atrás tentando descobrir onde acaba e nunca acaba. frevo é tradição porque a gente quer manter o que foi criado antes, nossas referências e fundamentos, ao mesmo tempo que a gente quer dar frutos novos para o frevo”, afirma Albino.

Já o bandolinista e arranjador Rafael Marques, maestro da novíssima Orquestra Malassombro, conta que teve o trabalho muito bem recebido pelos maestros tradicionais. “Maestros e compositores tiveram uma recepção muito boa. Não sei se por eu já ser reconhecido no meio, já toquei com esses grandes nomes. Formiga adorou a ideia, Getúlio Cavalcanti gosta pra caramba. Duda apareceu em um dos dias que a gente estava fazendo um acerto de marcha na Bom Jesus, viu o show todinho, olhando as partituras e balançando a cabeça”, relata.

“Tem uma música da gente que o nome é "Evocação 2100", em que a gente fala os nomes de hoje como se tivesse evocando em 2100. E cita uma série de nomes ‘Cadê Alceu, cadê Antúlio Madureira… Edson e Michiles, Hugo Martins para o frevo não parar. A estrela Dalva Torres e os violões de Alberto e Bozó… Almir Rouche se foi…” e por aí vai… Tem uma galera que não foi citada e achou ruim”, brinca Rafael. “Muito por a gente estar entrando com respeito, todos são músicos profissionais incríveis que estão fazendo um trabalho com cuidado?”, pondera.

O bandolinista Rafael Marques, maestro da novíssima Orquestra Malassombro | Foto: Paullo Almeida / Folha de Pernambuco