Entenda em 9 pontos como funcionava o esquema de fraude da Americanas de R$ 20 bilhões
Contratos de publicidade e dívidas com fornecedores foram usados para turbinar números da empresa, aponta documento
A Americanas afirmou nesta terça-feira (13), pela primeira vez, que sua antiga diretoria realizou uma série de fraudes para esconder a real situação da companhia.
Antes chamadas pela empresa de "inconsistências contábeis", as operações foram detalhadas em comunicado ao mercado financeiro em que a nova diretoria relata os resultados preliminares da investigação independente que está sendo conduzida na empresa.
O documento mostra como a empresa fez uso de contratos de propaganda e financiamentos a fornecedores para tentar maquiar seus números.
Entenda, em nove pontos, como a empresa conseguiu esconder por tanto tempo uma fraude de R$ 20 bilhões e as consequências que o documento revelado nesta terça-feira pode ter:
1. Contratos de publicidade artificiais
A antiga diretoria da Americanas, de acordo com o fato relevante, teria usado uma série de contratos fictícios de propaganda, "artificialmente criados para melhorar os resultados operacionais" da empresa.
Esse tipo de contrato movimenta a chamada Verba de Propaganda Cooperada (VPC). Para reduzir custos, as varejistas promovem ações de publicidade de produtos de seus fornecedores. Ao fazer essa "cooperação", a empresa ganha um desconto na hora de pagar pelos artigos adquiridos.
2. Instrumento comum do varejo
André Pimentel, sócio da consultoria Performa Partners, especializada em varejo, afirma que o instrumento é "comumente" usado no setor e, historicamente, é considerado um ponto que demanda a atenção das empresas de auditoria contábil. No passado, esse tipo de contrato já foi fonte de problemas em balanços de varejistas. O exemplo mais recente aconteceu com o Carrefour, em 2010.
— Faz sentido que a indústria beneficiada na propaganda dê uma contrapartida financeira. Isso envolve uma negociação. No caso da Americanas, ao que parece, essas negociações e contratos não existiam na realidade — explica.
3. Contrato sem lastro
As contrapartidas contábeis desses contratos de VPC "não tiveram lastro financeiro associado" e foram em sua maior parte lançados como "redutores da conta de fornecedores", de modo a reduzir o custo da mercadoria vendida, segundo o fato relevante da Americanas. Ao todo, esses redutores somam R$ 17,7 bilhões no balanço da varejista. Outros R$ 4 bilhões aparecem no balanço como ativo da companhia.
4. Fraude clássica
Para o advogado Antônio Mazzucco, do escritório Mazzucco e Mello, que representa credores não financeiros da Americanas na recuperação judicial da varejista, o caso é uma fraude clássica.
— Criou-se um ativo que não existia na Americanas. É a típica fraude contábil. Esses contratos eram fictícios e geraram créditos sem lastro para a companhia — afirma.
5. Duração é uma incógnita
O documento não revela por quanto tempo esse esquema funcionou, apenas diz que os lançamentos ocorreram por "um significativo período" e atingiram o saldo de R$ 21,7 bilhões no fim de setembro do ano passado.
Pimentel afirma que não está claro se todos os contratos de propaganda cooperada da Americanas eram falsos.
— Esse comunicado serve para a Americanas dar uma resposta ao mercado e dizer que está trabalhando. Mas não diz por quanto tempo houve esse problema, quanto isso afeta a margem e os resultados — diz.
6. Favorecidos
Mazzucco diz que o documento é favorável aos membros do conselho de administração da Americanas, entre eles o acionista Carlos Alberto Sicupira, que junto com Marcel Telles e Jorge Paulo Lemann forma o trio de acionistas de referência da Americanas.
— Se houve fraude nas contas apresentadas e somente os diretores sabiam, os acionistas podem mover uma ação contra os administradores da empresa. Ocorre que quem elegeu os supostos bandidos foi o conselho de administração. Além disso, um conselho se reúne regularmente e avalia negócios e relatórios gerenciais. Uma fraude desse tamanho extrapola as demonstrações financeiras. Vejo com sérias reservas o documento — ressalta Mazzucco.
Dizer que o conselho de administração está isento de responsabilidade porque a diretoria da empresa fraudava, apenas em VPCs, R$ 21,7 bilhões, além de contratos de empréstimo que eram cadastrados como dívida como fornecedor, é "questionável", pondera o advogado.
7. Responsabilização e desdobramentos
Em suas quatro páginas, o documento assinado pelas Americanas afirma que os membros da diretoria estatutária da companhia foram os responsáveis pela fraude, buscando "ocultar do conselho de administração e do mercado em geral a real situação de resultado e patrimonial da companhia".
Pimentel, da consultoria Performa Partners, diz que essa afirmação deve sofrer questionamentos na Justiça.
— A companhia formalmente admitiu que houve um crime. O plano de recuperação judicial da Americanas diz que os stakeholders (credores) têm de abrir mão do direito de litigar com a companhia. É improvável que se mantenha desse jeito na Justiça — afirma Pimentel.
8. Outras novidades do documento
Há também mais R$ 2,2 bilhões em operações de capital de giro também mal classificadas, ainda de acordo com o fato relevante. Para a advogada Beatriz Trovo, especialista em mercado de capitais, é provável que esse montante "tenha sido contabilizado no balanço, mas em uma 'linha' errada".
Segundo a Americanas, "a indevida contabilização dessas operações de financiamento nos demonstrativos financeiros da Americanas não permitiu a correta determinação do grau de endividamento da companhia ao longo do tempo".
O documento ainda afirma que "foram identificados lançamentos redutores da conta de fornecedores oriundos de juros sobre operações financeiras, que deveriam ter transitado pelo resultado da companhia" de R$ 3,6 bilhões em 30 de setembro. Para Pimentel, essa cifra teria impacto significativo no resultado da varejista.
Beatriz Trovo afirma que o imbróglio deve resultar em ainda mais atrasos na divulgação de resultados da Americanas. A companhia já está atrasada na divulgação das demonstrações relativas ao quatro trimestre de 2022 e ao primeiro trimestre deste ano.
9. O esquema que já era conhecido
A operação de risco sacado, ou forfait, que deu origem ao escândalo envolvendo a Americanas em janeiro, também aparece no fato relevante citada como fraude de R$ 18,4 bilhões. Risco sacado é uma modalidade de operação por meio da qual um varejista compra mercadorias de um fornecedor usando uma triangulação com uma instituição financeira, que antecipa o pagamento ao fornecedor e cobra dele e do varejista juros e encargos pelo serviço.
Desde 2016, a Comissão de Valores Mobiliários, órgão regulador do mercado de capitais, orienta as empresas a classificar essas operações como dívida bancária, mas a Americanas colocava os valores desse tipo de operação bancária na conta de fornecedores, como se não fosse uma dívida com instituições financeiras.