FRONTEIRAS

Portugal "abrasileirado": vantagens e desvantagens entre os dois países sob a visão pernambucana

Lisboa, Porto e Faro são as cidades de Portugal que têm Consulados-Gerais do Brasil

Portual, na Europa - Alfeu Tavares/Folha de Pernambuco

Mudar não é uma tarefa fácil, sobretudo quando engloba várias questões de uma só vez. Cultura, segurança, hábito, idioma, saúde, família e rotina, além de saudades apertadas nas malas, se encaixam entre as principais “reviravoltas” que a vida de pernambucanos carrega, depois de eles terem decidido trocar o Brasil por Portugal. E como toda mudança, com suas vantagens e desvantagens.

De acordo com as informações do Instituto Nacional de Estatística (INE), Portugal recebeu nos quatro primeiros meses deste ano, 54% a mais de turistas brasileiros que no ano passado, durante o mesmo recorte de tempo. Essa porcentagem representa 320 mil pessoas.

Experiência de dias
Técnico em Logística, Josué Almeida, de 27 anos, está no novo país há menos de um mês. Tempo suficiente para que formasse opinião sobre onde acredita ter sido “o maior choque”. 


“Cultura. Acho que é um ponto crucial, pois às vezes chegamos em locais sem conhecer os costumes e os modos”, disse.


Valorizando a economia, ele elencou pontos positivos que encontrou do lado de lá da fronteira, além da dificuldade no processo de inserção no mercado de trabalho português. “Tem muitas vagas de emprego, porém, é um pouco burocrático a questão do primeiro emprego e alguns documentos. Eu escolhi Portugal por vários motivos, como qualidade de vida, acesso a um ótimo custo de vida, bom poder de compra e possibilidade de fazer dinheiro”, revelou.

Por ter encontrado na prática todos esses cenários, Josué Almeida se estrutura para compartilhar a nova realidade com quem já divide a vida, a técnica de enfermagem Isabella de Almeida, de 23 anos. Ela está no Brasil aguardando que o marido se empregue, para então dar início ao seu trajeto internacional. O casal só encarou o desafio com base num exemplo “de casa”, que serviu de inspiração para abrir portas. E asas.

“Meu cunhado tomou a iniciativa e foi em novembro de 2022, e assim que conseguiu o emprego comprou a passagem para esposa e o filho. Tomamos como base esse método e executamos. Eu vim primeiro e ela vem assim que eu conseguir emprego. Vamos comprar a passagem assim que eu começar a trabalhar”, projetou, antes de apontar as duas alternativas que adotou para arrecadar dinheiro.

“Peguei meus recursos da empresa e vendi minha moto”, complementou.

O segredo tá na preparação
Em Portugal há cinco anos, o recifense, poeta e gestor de marketing, Tiago Vieira Fernandes de Paiva, de 43 anos, alertou para um estudo “seguro” sobre o destino da viagem antes da mudança, exaltando a preocupação que se deve ter com a moradia


“É preciso pesquisar sobre o país e as condições atuais de trabalho, educação, cultura, oportunidades e, atualmente, o mais importante, que é a moradia. Essa pesquisa tem que ser feita em fontes seguras”, disse.

Filho de portuguesa, ele solicitou a nacionalidade e conseguiu se firmar na terra lusitana. A facilidade para isso “pesou” na avaliação positiva do lugar. “Solicitei minha nacionalidade ainda no Brasil, no consulado. Amo Portugal, mas isso se deve, em grande parte, ao fato de não precisar de visto ou qualquer outra autorização de residência, facultada a estrangeiros. Minha mãe é portuguesa e por isso já vim com nacionalidade portuguesa. Vim para viver uma experiência fora do meu país de nascimento”, explicou.

O recifense Tiago em Portugal; ele é filho de mãe portuguesa (Foto: Arquivo pessoal)

Assumindo a condição essencial de “ponto de partida” numa nova vida, a moradia também faz parte do dia a dia profissional de Tiago, que atua como consultor na empresa Rotunda e busca estender esse direito a pessoas que optam por encarar o mesmo desafio que ele.


“A empresa  faz o intermédio para que os imigrantes brasileiros cheguem aqui legais e regulares, ela também ajuda a regular os que estão irregulares aqui. Portugal disponibiliza diversas possibilidades para quem deseja imigrar de maneira legal,  há vistos para quem tem rendimentos próprios como aposentados e pensionistas, visto para profissionais qualificados, visto para trabalhar e também para procurar trabalho”, exemplificou.


Racismo e xenofobia são “culturais” 
O ingresso no país, por sua vez, não é garantia de uma rotina justa, já que casos de xenofobia e racismo com brasileiros são constantes em Portugal. Até então, o recorde é do ano de 2021, com 109 registros (26,7%) tendo a naturalidade brasileira como a causa. 

“É muito desafiador lidar com ambas as questões. O poder público e demais autoridades não parecem estar preparados, mas no Brasil enfrenta-se um preconceito muito mais violento”, disse o gestor.

No mês passado, a vítima de racismo foi o brasileiro e rapper Kauã Zurc, de 20 anos. Ele teve uma apresentação musical num vagão do metrô português interrompida por uma mulher que o perseguiu. 

No início de junho, o recifense e engenheiro civil Saulo Jucá foi espancado enquanto o agressor questionava sua naturalidade. O episódio aconteceu na cidade de Braga.

Já em maio, o casal formado pelo alagoado Jefferson Tenório e o cearense Luís Almeida estava no Titanica Sur Mer, um bar em Lisboa, quando Tenório afirma ter sido torturado por seguranças do estabelecimento. Eles acreditam que o que aconteceu foi um caso de racismo e, por questões de segurança, preferiram deixar a cidade.

Medidas para reverter cenário
Neste ano, os governos dos dois países debateram sobre os últimos casos e instauraram acordos de cooperação, a exemplo da criação de um protocolo com universidades através do Observatório de Combate ao Racismo e à Xenofobia, em Portugal.  

As cidades de Lisboa, Porto e Faro têm Consulados-Gerais do Brasil, que devem, após receber as denúncias, solicitar ações policiais e prestar assistência ao brasileiro que lá está. Os Consulados-Gerais de Lisboa e do Porto oferecem, ainda, serviços de assessoria psicológica a esses cidadãos.

Foram dois, voltaram três: a matemática do amor
Portugal foi o destino escolhido pela jornalista Eliza Santos, de 38 anos, para realizar o seu sonho de cursar doutorado. A programação inicial da viagem foi voltada para os estudos, porém a natural curva da vida permitiu que ela se surpreendesse com outros títulos para além do novo diploma. 

Entre a rotina de provas e afazeres acadêmicos, ela se deparou com um degrau ainda mais sólido na relação com seu marido, o também jornalista Daniel Leal, de 36 anos, e também a maternidade, que não quis esperar até o momento de voltar para casa para se fazer morada.

Daniel, Eliza e o português Henrique (Foto: Ed Machado/Folha de Pernambuco)

O pontapé deste capítulo começou em 2019. “Eu tinha acabado o mestrado e estava com a ideia de emendar com o doutorado, porque eu queria seguir com a minha pesquisa. Vi numa matéria o processo seletivo em parceria entre a UFPE e a Universidade do Porto. Daniel estava em processo de acordo para sair do trabalho e eu pensei que fosse a hora certa”, relembrou.

Ela estava certa. “Me inscrevi e deu certo. Passei”, vibrou. Daniel estava concluindo seu mestrado e reencontrou a amada quatro meses depois, fazendo da Europa um continente mais romântico.

Eliza trabalha como servidora pública, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Esse foi o motivo das passagens de volta já serem esperadas.

“Na UFPE tem esse incentivo à qualificação. Você consegue fazer o mestrado ou doutorado com uma licença, recebendo seu salário. E depois que finalizar, ainda tem o aumento de qualificação. Então, foi muito legal e serviu também como um começo fora. A gente sabia que era com a volta certa. Fomos em 2019 e voltamos no início deste ano”, relembrou.

O que ela não esperava mesmo era que a bagagem de volta ao Recife seria ampliada, assim como a família, e que sua permanência por lá seria estendida em seis meses, por conta de uma licença-maternidade. Por conta de Henrique Santos Leal, hoje com um ano e nove meses.

“Quando eu estava no mestrado, a gente já pensava. Aí eu disse para esperar concluir o mestrado. Comecei o doutorado e pensei que quando acabasse, já não teria mais idade, então a gente ‘tava liberado’ e aconteceu”, relembrou.

Em março de 2020, o mundo acendeu alertas para a pandemia da Covid-19. O primeiro momento da doença não assustou tanto o casal, o segundo, no entanto, foi mais delicado, pois agora havia três vidas para preservar.

“Foi um momento difícil, mas naquele primeiro momento não quisemos voltar. A gente se sentiu seguro lá na primeira onda, apesar de não saber o que era e de ainda não ter vacina. Depois, no final de 2020, a gente veio visitar a família da gente aqui, porque a gente já estava há mais de um ano lá, e quando voltamos Portugal ficou péssimo, que era começo de 2021 e da segunda onda. Foi quando também a gente descobriu que eu estava grávida”, afirmou.

Morando na cidade do Porto, ao Norte do país, onde existe mais frio e conservadorismo, e menos estrangeiros que a capital Lisboa, os choques entre as realidades foram inevitáveis.

“As mudanças estruturais são muito grandes. Lá a xenofobia é estrutural, como o racismo aqui. Eles nem percebem”, iniciou Eliza.

Daniel trouxe como um dos exemplos “entre os dois mundos” a forma de descoberta do gênero do bebê, que tinha tudo para ser um momento único e emocionante.

“Fizemos todo o programa de acompanhamento pelo sistema público de saúde. No segundo ultrassom, quando íamos saber o gênero, a médica explicou que ia ser demorado, porque teria muitos detalhes para ver e saber se a criança tinha algum problema de cromossomo. Eu fiquei um tempão com Eliza na sala, e teve um momento que fui ao banheiro e voltei bem rápido, mas nesse instante em que voltei, Eliza me disse que era um menino. Eu perguntei para a médica se ela não poderia ter esperado eu voltar, fui bem incisivo e disse que tinha sido uma indelicadeza. Existem determinadas situações que para a gente é estranho e para eles é normal”, salientou.

A utilização do Sistema Nacional de Saúde (SNS) foi uma dentre tantas possibilidades encontradas por eles, que não enxergam o mesmo acontecendo no Brasil.

“A grande diferença entre Brasil e Portugal é a segurança. Não existe violência na rua. Você pode ir tranquilo para a rua a qualquer hora. O que acontece de violência é um furto a carro pontualmente. Não existe violência de assalto. Se acontecer alguma vez, é a semana toda repercutindo, porque não existe”, garantiu Daniel.

De cara, essa liberdade causa estranheza a qualquer mulher brasileira, cuja rotina é podada por restrições a lugares e horários. Com Eliza não foi diferente.

“Tinham lugares escuros no centro e minha cabeça de brasileira ficava com medo. Até essa coisa de ter que haver iluminação não é uma preocupação por lá”, rememorou.

“Aqui a gente tem que suprir o que o Estado não supre. Aqui temos que pagar um plano de saúde, porque o Sistema Único de Saúde, o SUS, não supre. Aqui temos que pagar por um carro alto, porque as ruas estão cheias de buracos e não tem um transporte público de qualidade. Usamos metrô pra todo canto lá e era bem moderno. Lá, conseguimos viver bem com o dinheiro que tínhamos. O básico era garantido”, assegurou Eliza, em complemento.

Por conta da gravidez, a saúde acabou sendo a área de maior experiência para Eliza, incluindo alguns acontecimentos negativos.

“Minha médica é uma pessoa ótima e bastante profissional. Em nenhum momento ela demonstrou tratamento grosseiro comigo, só que eu fiz vários exames e em um apareceu que eu já tinha tido toxoplasmose (infecção causada por contato com alimentos contaminados ou fezes de animais e que pode trazer complicações graves em gestantes), aí ela disse que eu não precisava ficar neurótica, porque lá era raro, por ser um país asseado, dando a entender que a gente vinha de um país sujo. Só que ela não percebeu”, disse, reforçando a tese de uma cultura banhada à xenofobia.

Relatos como esse se estenderam até o pós-parto.

“Eu tinha acabado de parir e tinha uma portuguesa do meu lado na mesma situação. No dia seguinte, tivemos que usar um absorvente com gelo, porque tivemos dilaceração. E aí, eu pedia coisas a enfermeira e nada, e eu via que tudo que a outra menina pedia, chegava. Eu pedia água e não chegava. A enfermeira era bem simpática, mas não trazia nada que eu pedia. Podia não ser agressivo, mas acontecia. Se ela levava tudo para a outra, por que não trazia para mim?”, perguntou. 

Equilibrando os cenários, ela revelou que durante a fase do pré-natal, por meio do SNS, teve acesso a um curso gratuito onde temáticas e práticas como parto e amamentação foram vivenciadas. O conteúdo, segundo ela, pertencia ao Sistema Único de Saúde (SUS)
 
Para Daniel, os maiores obstáculos foram em busca de consolidação no mercado de trabalho. Diferente da esposa, que chegou com o doutorado já encaminhado, ele não conseguiu “revalidar” sua experiência na área do jornalismo. Não de início.

“Quando cheguei lá, trabalhei de garçom, porque não consegui emprego na minha área. Depois, no call center (central de atendimento)”, relembrou.

Passadas essas duas experiências fora da sua área de especialização, ele pôde voltar a se dedicar ao ramo esportivo do jornalismo. Mas também registrou dificuldades.

“Escrevendo, foi um trabalho enorme. No começo, pegaram meu texto ponto a ponto e foram detalhando os termos que eu podia usar ou não, as palavras que tinham significado diferente… eu fui evoluindo até me estabelecer. Até no final da minha passagem, algumas pessoas pegavam meu texto e diziam que tinha ‘sotaque’ brasileiro”, afirmou.

Dentro do novo idioma, havia ainda uma outra linguagem que precisava ser dominada pelo repórter: a do futebol. Materiais esportivos, funções em campo e acessórios, em Portugal, têm seu próprio “dialeto”. Alambrado, se chama vedação, por exemplo; chuteiras, botas de futebol; goleiro, guarda-redes; e gramado, relvado.

“Fiz um glossário para poder não errar. Eu acabava de escrever um texto e ficava inseguro sobre poder publicar. Quando eu ligava para apurar alguma coisa, as pessoas tinham estranhamento. O pessoal às vezes falava determinada frase que eu não entendia, então eu pedia para repetir e perguntavam se tinha que ser um brasileiro entrevistando mesmo”, detalhou.

De volta ao apartamento no Recife com um filho português e os vistos de residência ainda em validade, o casal não tem perspectiva de deixar o Brasil a curto prazo. Saudade e ausência de uma rede de apoio, além do emprego de Eliza, argumentam a decisão.

“Sentimos muita falta da família e nós víamos Henrique crescer sem a presença das avós. Isso fez muita falta nos momentos difíceis, de doença, principalmente. A rotina com uma criança pequena é pesada e demanda muita atenção. Acho que tínhamos mais qualidade de vida lá, mas Henrique tem mais qualidade de vida aqui. A princípio, não pensamos em voltar. A gente deixa a possibilidade em aberto”, encerrou.

Turistas em Portugal (Foto: Alfeu Tavares/Folha de Pernambuco)

O que diz especialista
Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense (UFF), o professor Antonio Henrique Lucena apontou a frequência com que esses casos são relatados pela população brasileira que viaja até Portugal. Um paralelo histórico também foi “desenhado” por ele, resgatando o período em que atividades específicas só poderiam ser desempenhadas por estrangeiros.

“Digamos, de forma geral, que esse aspecto da xenofobia não é novo. Brasileiros reclamam muito. Quando teve uma grande leva de brasileiros, principalmente na década de 80, Portugal teve um grande crescimento econômico, que durou até o início da década de 90. Alguns portugueses não tinham habilidades e competências nas áreas de odontologia e construção civil que brasileiros tinham, por exemplo. Então, surgiram os comentários de que brasileiros estavam ‘roubando’ empregos dos portugueses”, disse.

Na “linha do tempo”, o ano de 2017 marca o aumento desses casos, que se estendem até mesmo em espaços de educação.

“Desde 2017 houve um aumento da xenofobia contra brasileiros. As universidades de lá passaram a aceitar as notas do Exame Nacional do Ensino Médio e no ambiente acadêmico também há relatos de que o grau de xenofobia é alto, entre professores e alunos”, afirmou.

Antonio Henrique Lucena diz que xenofobia em Portugal "não é algo exclusivo dos brasileiros"  (Foto: Arquivo pessoal)

Dentro da xenofobia, há o agravante do gênero, segundo o professor.

“São preconceitos arraigados dentro da sociedade portuguesa, onde homem brasileiro é ladrão e mulher é prostituta. Apesar dos atrativos que existem, também existem esses preconceitos em grande medida”, ressaltou.

Ele também fez questão de mencionar outros dois povos que encontram o mesmo tipo de tratamento.

“Não é algo exclusivo dos brasileiros, africanos e asiáticos também passam pelo mesmo tipo de preconceito”, finalizou.


Abaixo, confira os países com mais brasileiros por continente

Brasileiros na América do Sul
Paraguai - 245.850
Argentina - 90.203
Guiana Francesa - 82.500
Uruguai - 46.848
Bolívia - 42.000

Brasileiros na América do Norte
Estados Unidos - 1.905.000
Canadá - 122.400
México - 40.000

Brasileiros na América Central e Caribe
Panamá - 4.000
Costa Rica - 1.500
República Dominicana - 900
Guatemala - 500
El Salvador - 500

Brasileiros na Europa
Portugal - 275.000

Reino Unido - 220.000
Espanha - 165.000
Itália - 162.000
Alemanha - 138.955

Brasileiros no Oriente Médio
Líbano - 21.000
Israel - 15.000
Emirados Árabes - 6.000
Palestina - 6.000
Arábia Saudita - 629

Brasileiros  na África
Angola - 13.290
África do Sul - 3.700
Moçambique - 3.000
Egito - 2.500
Guiné-Bissau - 450

Brasileiros  na Ásia
Japão - 206.259
China - 6.653
Taiwan (China)  -1.705
Singapura - 1.700
Indonésia - 1.000

Brasileiros na Oceania
Austrália - 60.000
Nova Zelândia - 6.663

*Números são estimativas
Fonte: Ministério das Relações Exteriores