Podcast resgata história da "internet via telex" chilena, criada antes do golpe de Pinochet
"The Santiago Boys", produzido pelo pesquisador bielorruso Evgeny Mozorov, descreve revolução cibernética do socialista Salvador Allende; "Uma tecnoutopia diferente da Elon Musk é possível", diz ele
No início dos anos 1970, uma sala hexagonal no prédio da estatal de telecomunicações chilena, em Santiago, chamava atenção por parecer o interior de uma nave da série de ficção científica “Star Trek”. No centro, havia sete cadeiras brancas com estofado cor de laranja. Nas paredes, telas exibiam dados coletados em fábricas de todo o país e enviados por telex. Lá, funcionava o Projeto Cybersyn, um sistema de mineração de dados capaz de auxiliar na gestão das indústrias recém-nacionalizadas pelo presidente esquerdista Salvador Allende.
A “internet socialista” foi interrompida pelo golpe militar de 11 de setembro de 1973, que inaugurou a sangrenta ditadura do general Pinochet. No entanto, para o pesquisador bielorrusso Evgeny Mozorov, autor de “Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política” (Ubu), a memória do Cybersyn pode inspirar países periféricos a apostar na soberania tecnológica. Ele narra em detalhes a iniciativa chilena de usar dados para uma sociedade mais justa no recém-lançado podcast “The Santiago Boys” (disponível inglês no streaming e com legendas em espanhol e português no YouTube).
Mozorov esteve no Brasil no fim de agosto para dar palestras em São Paulo, Rio e Brasília e se reuniu com movimentos sociais, com a ministra da Gestão e Inovação em Serviços Públicos Esther Dweck e com o ministro do STF Luís Roberto Barroso. Em conversa com o Globo, ele explicou ter resgatado a história do Cybersyn para questionar as “narrativas excepcionalistas” do Vale do Silício que tratam plataformas como o Facebook, o Google e ChatGPT como invenções “sem precedentes”.
"Essas narrativas moldaram nosso entendimento do que é a internet" diz Mozorov. "Por isso, quis combatê-las com uma história que mostra que não dá para separar tecnologia de economia e geopolítica. E que os políticos de antigamente eram mais corajosos"
Influência brasileira
O título do podcast é uma subversão do apelido Chicago Boys, dado aos tecnocratas que assumiram a economia chilena após o golpe e transforaram o país em um laboratório de políticas neoliberais. O líder dos Santiago Boys, porém, era um inglês de ares aristocráticos chamado Sttaford Beer. Até Rolls-Royce ele tinha. Mas, no Chile, enfrentou burocratas e defendeu a participação dos trabalhadores no Cybersyn.
Seus subordinados, em contrapartida, eram legítimos “Santiago Boys”, egressos da Universidade Católica do Chile e leitores da chamada teoria da dependência, formulada por intelectuais latino-americanos (como ex-presidente Fernando Henrique Cardoso) que pensavam as possibilidades de desenvolvimento das economias periféricas. O Brasil é mencionado com frequência no podcast por ter inspirado tanto os nerds engajados de Allende quanto os generais de Pinochet.
"Por um lado, os militares chilenos tiraram lições do golpe de 1964 no Brasil. Por outro, nenhum outro país influenciou tanto o modo como a esquerda chilena pensava a economia" diz Morozov, que encontrou um Santiago Boy brasileiro: Carlos Senna, engenheiro exilado.
Soberania tecnológica
Entre boicotes internacionais e terrorismo de extrema direita, a revolução de Allende resistia como dava. Em 1972, os Santiago Boys conseguiram usar seu sistema para evitar o desabastecimento durante uma greve de caminhoneiros. Mas havia adversários mais perigosos do que motoristas irritados com a inflação. Como a ITT, empresa de telecomunicações que mantinha laços estreitos com a CIA e antagonizou líderes latinos interessados na soberania tecnológica de seus países, do argentino Perón ao cubano Fidel.
Para Mozorov, a soberania tecnológica continua na ordem do dia. O autor defende que os Estados nacionais invistam em infraestruturas públicas para escapar da “camisas de força” das big tech e incentivar a inovação. E projetos de soberania, seja tecnológica ou econômica, não dispensam um pouco de “mitologia”, diz ele. E nisso os Santiago Boys podem ajudar.
"Todo projeto político parte de uma mitologia. Infelizmente, as mitologias que inspiram os progressistas não são muito tecnológicas (risos). Ainda é a Comuna de Paris (1870)" afirma. "O Projeto Cybersyn mostra que uma tecnoutopia diferente da de Elon Musk é possível".
Morozov, que fala espanhol e português, estuda dublar “The Santiago Boys” nas duas línguas. E sonha em transformar a história da revolução cibernética chilena em um filme.
"Não um documentário, mas um longa de ficção. As melhores mitologias vêm de filmes, não de podcasts (risos)."