Dia do Nordestino: a história e a diversidade cultural de uma região para além dos estereótipos
Homenagens e datas comemorativas à parte, a efeméride é uma boa oportunidade para contemplar a variedade de expressões artísticas dos muitos "Nordestes" dentro do Nordeste
O Dia do Nordestino, instituído pela primeira vez em 2009, na cidade de São Paulo, em homenagem ao centenário do nascimento do poeta popular cearense Antônio Gonçalves da Silva, o Patativa do Assaré - e posteriormente revogado e alterado para 2 de agosto (dia da morte de Luiz Gonzaga) - passará em breve a integrar oficialmente o calendário nacional (8 de outubro), assim que for aprovado o Projeto de Lei 2755/2022, do Senado Federal, desta vez em tributo ao poeta, teatrólogo, músico e compositor Catulo da Paixão Cearense, o Poeta do Sertão, nascido em 8 de outubro de 1863 em São Luís, no Maranhão.
Homenagens e datas comemorativas à parte, a efeméride é uma boa oportunidade para contemplar a variedade de expressões culturais dos muitos “Nordestes” dentro do Nordeste. A editoria Cultura+ se debruçou sobre o assunto para contar um pouco da história da cultura nordestina além dos clichês e refletir sobre os estereótipos e generalizações que não abarcam toda a complexidade social e a produção artística pulsante dos nove estados que compõem a região, cada um com suas particularidades.
“É fundamental a gente olhar para a diversidade dentro do Nordeste. Não temos sotaque único e culturalmente temos coisas em comum, mas temos muitas diferenças e a gente precisa também ressaltá-las”, pontua a historiadora Elza Mendonça, especialista em História do Nordeste do Brasil pela Universidade Católica de Pernambuco.
A emergência e a “invenção” do Nordeste
O surgimento do conceito de Nordeste acontece apenas no final dos anos de 1910, em um decreto de 25 de dezembro de 1919 do governo do paraibano Epitácio Pessoa, único presidente da República Velha nascido no Norte do Brasil. Ele lança, como presente de Natal para sua área de influência política, um programa de obras contra as secas.
No cabeçalho desse decreto, ao definir a área em que essas obras iriam ser construídas, ele utiliza a palavra Nordeste. Só que no sentido de uma área entre Norte e Leste, ainda sem identidade regional, mas como uma localização onde as obras iriam acontecer, entre Alagoas e o Ceará. Essas obras passaram a ser assunto nos anos seguintes, com a oposição das bancadas do Sul por causa do volume de recursos transferidos, da morosidade, desperdício de dinheiro e corrupção.
“Esse conceito das ‘obras do Nordeste’ começa a circular na imprensa e há um debate regional muito intenso. O governo de Epitácio vai de 1919 a 1922 e nesses três anos esse conceito circulou a ponto da Arquidiocese de Fortaleza criar, em 1922, um jornal chamado ‘O Nordeste’, primeiro órgão de imprensa a assumir essa ideia”, explica o historiador paraibano Durval Muniz, autor do livro “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, versão resumida de sua tese de doutoramento defendida em abril de 1994 na Unicamp.
“Até meados da década de 1910, o Nordeste não existia. Ninguém pensava em Nordeste, os nordestinos não eram percebidos, nem criticados como uma gente de baixa estatura, diferente e mal adaptada. Aliás, não existiam. As elites locais não solicitavam, em nome dele, verbas ao Governo Federal para resolver o problema de falta de chuvas, da gente e do gado que morriam de fome e de sede, como registra Graciliano Ramos, em Vidas Secas, livro que se tornou filme famoso. Ademais, o problema mal era anunciado; era apenas vivido. Sem grande visi/dizibilidade”, descreve o prefácio de “A Invenção do Nordeste”, da professora e pesquisadora Margareth Rago.
“É a esta difícil questão - a emergência do Nordeste - que este livro vem dar explicação. Vem contar, poética e cientificamente, como nasce esta vasta região ensolarada, cheia de vida, de calor humano e de musicalidade, espaço sociopolítico diferenciado e contrastante, carente, pesado, responsável pela existência de tantos problemas, misérias e conflitos. Não se trata, contudo, de um trabalho de geografia física ou de história econômica. Poderíamos dizer que o autor faz história sentimental”, conclui Margareth.
NE nas ciências, na imprensa e nas artes
Em 1922, Agamenon Magalhães, que posteriormente vai ser governador de Pernambuco, faz um concurso para a cadeira de Geografia do Ginásio Pernambucano e defende uma tese chamada “Geografia do Nordeste”, sendo a primeira vez que o conceito é abordado academicamente no Brasil. No ano seguinte, Gilberto Freyre retorna ao país de seu mestrado nos Estados Unidos e, logo no ano seguinte, funda o Centro Regionalista do Nordeste.
“Uma instituição que já na ata de fundação vai definir que sua finalidade era militar em torno da ideia de Nordeste. A atuação desse centro, que tem reuniões semanais, teve repercussão no Diario de Pernambuco, um jornal que circulava por toda a região, chegava nas capitais através dos trens e era lido por toda a elite da região. Vai se construindo, então, um conteúdo histórico, memorialístico e cultural”, explica Durval Muniz.
“Em 1925, no aniversário do centenário do Diario de Pernambuco, Gilberto Freyre, que na época já era editor do jornal, vai publicar um encarte de mais de 70 páginas na edição comemorativa chamado ‘Livro do Nordeste’, onde convida intelectuais e políticos da região para escrever sobre temáticas específicas, sempre tratando dos últimos 100 anos”, destaca Muniz.
Segundo o historiador, eram artigos sobre temas diversos fazendo um balanço dos últimos 100 anos, por exemplo, “as relações institucionais do Nordeste”, “a economia do Nordeste” e “a cana de açúcar nos últimos 100 anos”, incluindo um texto de um linguista alagoano chamado Mário Marroquim falando de uma “língua do Nordeste”, resultado de uma pesquisa que ele realizou em Alagoas, na região de Murici, sobre o modo de falar daquela região. Já na primeira edição do encarte comemorativo, o Diario publicou, ainda, artigos sobre temas culturais como a produção de renda de bilros e a cantoria e o cordel nordestinos, que começou a construir o conteúdo cultural do Nordeste.
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