OPINIÃO

Influências hegelianas


     Alguém já disse ser impossível compreender o pensamento da filosofia contemporânea sem o estudo das obras de Hegel. Tomando como exemplo Lênin, o mesmo afirmou o seguinte: “sem a lógica de Hegel não se pode entender O Capital em toda sua profundidade.” 

     Quando Marx se deparou com os escritos de Hegel, já havia iniciado certa aversão ao pensamento hegeliano, que a época era tratado como um cachorro morto. Mas Karl Marx refutou a postura, reconhecendo a importância da filosofia hegeliana. Alguns chegam a afirmar que na noite da lua de mel, Marx levou para fazer leitura da obra Filosofia do Direito. Se for possível atribuir uma linha que ligue Hegel a Marx, nos sentimos na necessidade de enfrentarmos alguns desafios. O primeiro deles é até que ponto existe possibilidade em comparar Hegel com Marx, ou Marx com Hegel? O segundo desafio, encontra-se amparado na afirmativa de que a economia política de Marx é uma economia repensada do hegelianismo. O problema da comparação se depara logo no O Capital, pois o próprio Marx afirmou que “recebeu A Lógica de Hegel, antes de publicar O Capital”. 

     No que diz respeito à interpretação da história, há quem entenda que os dois filósofos alemães estariam próximos. Embora, exista aqueles que não concordam com tal afirmação. A corrente encabeçada por Alexandre Kojère e Éric Weil afirmam que ambos quiseram dizer a mesma coisa. Isso recai em um problema, pois Hegel nunca foi um autor fácil de compreensão. O saudoso Paulo Menezes dizia que Hegel não era filósofo que se discute em beira de caçada. Assim se conclui que Marx é um profundo hegeliano, pois o que ele fez foi “marxizar” o hegelianismo. Nossa proposta não é concordar ou discordar, mas sim lembrar que era a ideia defendida por Alexandre Kojève. A outra forma é adotada por Georges Gurvitch, ele não gostava do pensamento de Hegel. Assim, procurava interpretá-lo pelo viés do Panlogismo, procurando distanciar Hegel de Marx. Talvez seja mais simples se olharmos como Marx leu e entendeu Hegel e como procurou se situar em relação a ele. Tornando-se aparentemente menos complicado. É incontestável que Karl Marx leu Hegel. A filosofia alemã da época era Hegel. Não se tem como esconder que Marx durante sua juventude, entre 1837 e 1847, ele procurou se situar com relação a Hegel. Seus textos para Gazeta Renana, embora sejam artigos para um jornal, os chamados textos sérios de Marx até os meados de 1844, sua tese de doutorado sobre filosofia grega, A Questão Judaica, a Introdução à Crítica de Hegel, A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, O Manuscrito Econômico-filosófico, todos eles estão recheados de linguagem hegeliana. Marx formou seu pensamento na juventude no hegelianismo. Sendo assim, “o filósofo com quem Marx discute na juventude é Hegel”. Marx nunca foi hegeliano, consequentemente não se deve afirmar que foi seu discípulo de Hegel. Mesmo sem nunca ter sido hegeliano, o filósofo por excelência para ele, é Hegel. Portanto negar a influência de Hegel em Marx é negar o que o próprio Marx afirmava ter lido. “A influência não se mede pelo grau de parentesco, mas pela importância que um pensador teve para o outro”. Em sua tese de doutorado Marx disse o seguinte: “o pensamento de Hegel representa uma finalização da filosofia, da mesma maneira que o sistema de Aristóteles representava uma finalização da filosofia grega”. Na visão de Marx a teoria está consumada na filosofia de Hegel, sendo uma espécie de síntese global. Para Hegel, a história e o tempo significam a criação da verdade do homem. A história é o devir da verdade e da humanidade.

     O debate entre a direita hegeliana e a esquerda hegeliana tem início pelo viés da religião. Religião e filosofia têm o mesmo conteúdo, mas a forma é outra, ou seja, a religião apresenta esses conteúdos sob a forma de intuição ou representação sensível, enquanto a filosofia traz o conteúdo da religião à forma conceitual, isto é, à única forma verdadeiramente racional. Esse tipo de interpretação pode ser uma maneira sutil do teísmo ou também do ateísmo. A maior parte dos chamados jovens hegelianos abraçaram a interpretação do ateísmo. Mas como isso aconteceu? Na perspectiva hegeliana, Jesus Cristo, é o Homem-Deus. Significando a proposição: religião e filosofia possuem o mesmo conteúdo, ou seja, a noção do Homem-Deus, mas a religião, sob uma forma, e a filosofia, sob outra? O Homem-Deus é a relação entre o particular e o universal, ou finito e infinito. Jesus, Homem-Deus, é a medição consumada entre o finito e o infinito, é o homem, que é finito enquanto homem é infinito enquanto Deus.

     Na religião, o conteúdo é apresentado sob a forma mitológica de um Homem-Deus, enquanto na filosofia de Hegel o vínculo entre finito e infinito aparece no termo da história e graças ao saber absoluto. Se essa linha de interpretação for à correta, então Hegel seria um ateu, pois Deus seria de certa forma, o conjunto da história humana. Deus seria a humanidade inteira, criando sua verdade, sendo a imanência absoluta. Sendo um Panteísmo sem Deus. Se a primeira tradução possível da ideia hegeliana sobre religião desembocou em uma crítica aos conteúdos religiosos em relação aos mitos, a segunda versão possível da crítica chegou à crítica teológica antiteológica, de que Marx foi amigo até 1842 e depois se tornou adversário de Bruno Bauer. Bruno escreveu um livro tentando demonstrar que Hegel era ateu. Algo aparentemente normal, já que os membros da chamada esquerda hegeliana da época eram adeptos do ateísmo e exerceram influência na filosofia de Karl Marx.

     Considerado o primeiro nome da esquerda hegeliana, Feuerbach sofreu censura de Marx por querer fazer do ser humano, o criador da religião. A crítica consiste em considerar o homem social e histórico, e não o homem em geral, como criador da religião. Em termos abstratos, diferencia a crítica antropológica da sociológica. É aí que encontramos um hegelianismo, mais aprofundado que qualquer outro da esquerda, vez que, Marx entende o seguinte: “não é o homem em geral que cria a religião, é o homem social e histórico, de dados períodos”. Combinando a crítica das representações religiosas com a crítica da realidade social, que faz surgirem às ilusões religiosas.

     A fase da crítica filosófica compreende sucessivamente a crítica da religião, a da política. E aí a fase do Manuscrito Econômico Filosófico (1844), onde se encontra a tentativa de síntese da filosofia crítica de Marx. Percebe-se a leitura de Hegel, pois é um desabrochar da filosofia marxista considerada uma crítica das ilusões. Ao mesmo tempo é uma crítica da realidade. É uma crítica racionalista e uma crítica sociológica que é amparada na filosofia de Hegel.

P. S. O artigo é parte de uma palestra proferida na UFPE.

 

*Cientista político