Reflexão sobre os encargos do usuário na crise da saúde suplementar
Diz-se que se você está diante de um problema, você certamente faz parte desse problema. E aí, “fazer parte” não denota necessariamente uma relação causal, de responsabilidade direta, mas tão somente uma relação que o insere no contexto do fato ocorrido, seja como polo ativo, polo passivo, testemunha ou cúmplice, apenas para citar como exemplo.
Beneficiários, clientes, pacientes, contribuintes, associados, segurados, não importa a nomenclatura usada, todo ser que utiliza o sistema de saúde, seja público ou privado, é agente direto e indissociável participativo da cadeia assistencial e dos seus resultados. Irei me ater aqui ao âmbito da saúde privada suplementar brasileira e chamarei a todos como “usuário”.
A crise pela qual o sistema privado está passando tem, sim, participação clara, direta e relevante do usuário. É ele quem efetivamente financia o mercado, seja como pessoa física ou como empregado de empresas contratantes. Está confortavelmente protegido por um arcabouço jurídico; uma miríade de direitos.
Uma economia livre é orientada pelo indivíduo e este costuma exportar o custo daquilo que faz. No modelo vigente, pode ele (o usuário), de forma espontânea, gerar a própria demanda, embora por vezes seja (com consentimento!) mero instrumento na geração de serviços fúteis e inúteis. Tem poder, mas não o usa da melhor forma. Tem liberdade, todavia outorga a terceiros. A solução passa, inexoravelmente, pelo ajuste do seu consumo pessoal.
A parcela (danosa) de contribuição atribuída a este usuário na crise da saúde suplementar se dá basicamente de duas formas: pela negligência ou pela malversação.
SOBRE A NEGLIGÊNCIA
Somos livres, ou “condicionalmente” livres. Definir liberdade não é algo trivial. Isaiah Berlim, em 1958, cunhou o conceito de liberdade negativa (DE) e liberdade positiva (PARA). Disse que quando somos livres DE impedimentos (medos, restrições, obstáculos, limitações) podemos fazer aquilo que bem
entendemos e queremos. Aos termos liberdade PARA fazermos algo (por meio de leis, normas, concessões, permissões) também atingimos a nossa intenção e satisfação pessoais, contudo, por outro caminho.
A sociedade ocidental tem nos últimos dois séculos migrado da via negativa para a positiva; tem abdicado de sua autonomia e de suas escolhas como ser livre DE impedimentos, deixando de buscar as soluções para os seus medos, restrições e limitações e optado por uma liberdade PARA fazer ou desfrutar de algo através de leis, concessões e permissões delegadas pelo Estado ou por instituições privadas.
Corolário disso, uma sociedade que não assume a sua responsabilidade e efetiva autonomia para com a atenção da sua própria saúde. Negligencia o CUIDAR e o autocuidado. Delega a terceiros tal tarefa. E como terceiros, compreende-se os profissionais da saúde, empresas, organizações, hospitais, operadoras de planos de saúde (OPS), o próprio Estado, e até mesmo blogueiros, influencers digitais e sites de pesquisa via internet. Esquece que ao longo da vida, diuturnamente, escolhas são feitas e trazem ao fim e ao cabo as suas consequências.
Alguém poderia lembrar de que, como dito anteriormente, o conceito de liberdade não é algo trivial e, nesse diapasão, poderia defender que, assim sendo, caberia fazer (ou deixar de fazer) o que bem quiser com a sua saúde. Poderia, de fato, mas aqui cito Aristóteles (384 a.c. - 322 a.c.), ao afirmar que “Somos seres da pólis. Nascemos para viver em sociedade. Não conseguimos viver sozinhos". E ao viver em sociedade, precisamos entender que certas escolhas (nossas) têm consequências sobre as vidas de outrem.
Felizmente somos livres, vivendo cada qual ao seu modo, e por conseguinte não somos iguais. Até porque liberdade e igualdade são dimensões excludentes.
Porém, a liberdade cobra o seu preço. Afastar-se da obrigação do autocuidado faz com que nos tornemos mais frágeis, vulneráveis, dependentes e mais custosos. Onerosos não apenas no aspecto pecuniário, mas também e notadamente no espectro e arranjo social e familiar. Já bastam as (más) situações impostas pelos desígnios da vida!
O indivíduo (usuário) precisa voltar a cuidar da sua própria saúde (e da saúde da sua própria família). Não é uma questão de viver mais, e sim melhor. É entender que prevenir e se antecipar costuma ser melhor que diagnosticar e tratar. Não se trata apenas de um direito (liberdade), mas sobretudo de um DEVER para com os demais (sociedade).
A definição de liberdade é complexa, mas NÃO é relativa! Isso precisa ficar bem claro. Não vamos, por favor, relativizar a liberdade.
SOBRE A MALVERSAÇÃO
Edmund Burke (1729-1797) defendia que: “A sociedade é uma associação entre os mortos, os vivos e aqueles que ainda estão por nascer”. Quis assim, em outras palavras, dizer que vivemos coletivamente sob os ditames de um contrato social que perpassa gerações, com seus direitos e deveres. Contrato este não somente composto por um amálgama de hábitos, costumes, leis naturais e consuetudinárias, tácitas, mas também por obrigações recíprocas constantes de instrumentos legais firmados entre as partes. Passado, presente e futuro se entrelaçam.
O sistema de saúde suplementar atual está fundamentado no princípio do mutualismo e do pacto intergeracional por meio de contrato, onde todos contribuem (com o valor devido) e poucos usam (somente quando efetivamente precisam). Assim deve ser! Quando tais princípios não são respeitados o negócio entra em colapso.
O usuário do sistema privado é um ser livre (como colocado acima) e esclarecido, com pleno acesso às fontes de informações acerca do seu problema e de tudo aquilo que compreende a sua jornada enquanto paciente.
Urge que use a sua liberdade com responsabilidade.
· Fazer o correto uso da sua “carteirinha” depende unicamente dele, usuário;
· A (tamanha) assimetria informacional antes existente entre o usuário e os promotores da saúde (profissionais, hospitais, clínicas, etc.) já não existe mais;
· Evitar realizar e repetir exames e procedimentos sabidamente
desnecessários, depende unicamente dele, usuário;
· Rejeitar reaver, por meios ilícitos, despesas cobertas e não cobertas, depende somente dele, usuário;
· Questionar os custos compreendidos (cobrados) no seu atendimento médico-hospitalar, depende dele, usuário;
· Aceitar uma rede assistencial a qual efetivamente atenda aos seus anseios e necessidades, tendo o custo - benefício como premissa básica, depende dele, usuário;
· Evitar a judicialização banal (estimulada por muitos) contra a OPS depende dele, usuário;
· Adotar hábitos de vida saudáveis depende essencialmente dele, usuário;
· Participar ativamente da programação diagnóstica e terapêutica proposta pelo profissional médico, depende dele, usuário;
· Assumir os cuidados dos entes familiares idosos, frágeis e doentes, naquilo que concerne à atenção ambulatorial e domiciliar, é atribuição (obrigação) dele, usuário e parente.
Poderíamos elencar muitas outras situações.
Usuários e operadoras de planos de saúde firmam contratos, seja diretamente ou por intermédio de seus empregadores.
Aceitar riscos não é apostar na sorte! A operadora de planos de saúde não pode “entregar à própria sorte” o destino da saúde de seus usuários. Da mesma forma as empresas contratantes devem agir junto aos seus empregados.
Problemas complexos e situações difíceis exigem uma análise holística, profunda e sem viés. A crise na saúde privada está longe de ser resolvida por leis ou resoluções normativas burocráticas. Decerto também não será superada por modismos gerenciais ou mercadológicos. Transcende a participação do usuário, sabemos, mas tem neste um valioso agente ativo transformador.
Recursos sempre são escassos e quando mal utilizados, seja como consequência de atos negligenciados ou como fruto de malversação, irão causar desequilíbrio e ineficiência no sistema, com repercussões irreparáveis aos seus componentes, no caso os (próprios) usuários. No campo da filosofia social, as pessoas costumam “comprar” aquilo que ajudam a construir. Assim, precisamos inserir (e cobrar) os usuários na (re)construção do sistema de saúde suplementar.
*Médico, Executivo e Especialista em Serviços de Saúde
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