A ele, os porcos: confira entrevista com Jefferson Rueda

Idealizador de A Casa do Porco, bar-restaurante no centro de São Paulo, que vende apenas porco e atende impressionantes 14 mil clientes por mês, abertos a botar abaixo os mitos que envolvem a proteína

Rueda vem quebrando um grande tabu da cozinha brasileira - WAGNER RAMOS/CORTESIA

Jefferson Rueda é um dos principais nomes da cozinha brasileira da atualidade. Idealizador de A Casa do Porco, bar-restaurante no centro de São Paulo, que vende apenas porco e atende impressionantes 14 mil clientes por mês, abertos a botar abaixo os mitos que envolvem a proteína. Jeffinho, como chamam os colegas, fez um gol de placa. Pilota um dos restaurantes mais famosos do País que, ao contrário do que se possa pensar, vende comida de alta qualidade a preço justo. Em entrevista exclusiva, o chef falou sobre o projeto gastronômico e sua paixão pelo animal.

Como surgiu A Casa do Porco?
Eu durmo e acordo criando as coisas. Enjoo fácil das coisas. Hoje, fico 15 horas por dia cuidando dos hot pork. Depois de 22 anos cozinhando, eu só faço o que eu tenho vontade. E o projeto do bar demorou quase cinco anos. A princípio, eu ia abrir uma porta para vender porco assado, o san zé [vendido em A Casa do Porco]. E comecei a fazer eventos servindo o prato, até que o Luiz Américo [crítico de gastronomia e autor do livro “Pão Nosso”], cantou a bola que o prato era a cara de São Paulo. Fiquei pensando nisso. Ao mesmo tempo, clientes chegavam ao restaurante onde trabalhava procurando o porco, e a gente não servia.

A gota d´água, há quatro anos, foi durante o G11 [cúpula de chefs do mundo reunida no Brasil], quando assei o porco para o grupo. Ferran Adrià passou a mão no microfone e disse que aquele tinha sido o melhor porco que ele já tinha comido na vida dele. Foi mais um que disse que eu precisava abrir um negócio com aquilo.

Por que abrir um negócio no centro de São Paulo?
Escolhi o centro porque era a chance de ficar próximo da minha família. Minha esposa [a chef Janaína Rueda] foi criada no centro, no Bexiga. Ela não queria abrir nada afetado, queria algo com a cara dela, a região central já tinha lugares tradicionais. E ainda tinha o nosso sócio, que mora a 40 passos de lá. Surgiu o Dona Onça, um verdadeiro divisor de águas.

No mesmo caminho veio A Casa do Porco, juntando a paixão pela mistura que é aquela região com a paixão pela proteína. O bar é isso: servir comida de rua, não aceitar reserva, não ter tíquete médio. Outra coisa legal também é que eu quero provar que comida boa não é necessariamente cara. A dupla de hot porks mesmo custa R$ 23, com todo aquele esmero, com salsicha artesanal, molhos feitos na nossa cozinha. Acho que muita gente grande vai reproduzir esse modelo de negócio. Porco também é uma proteína barata, isso é fundamental para o bom custo final, se fosse com peixe, não seria possível.

De onde vêm os porcos que você prepara?
Eu estou em constante desenvolvimento de fornecedores. Compro porco de Mococa, de Grama, em Itú, mas todos são abatidos em Piracicaba, em frigorífico. Acho que sou um divisor de águas nessa relação entre frigorífico, produtor e cliente. Consigo circular muito bem entre eles. Sei o que cada um quer, quais são os preconceitos que persistem e o que tem que mudar.

Você usa porcos com quanto tempo de vida?
Os meus porcos para assar têm 120 quilos, são animais formados. Diferente dos portugueses, que matam leitão. Pra mim, leitão é que nem queijo frescal: todo maciozinho, gostosinho, mas não tem DNA. Não sirvo leitão no bar.

Quais os principais mitos?
Os recifenses têm medo da cistercicose. No Sul do País, onde se cria muito porco, se faz apenas queijo de porco, que é um prensado, salsicha ou salame, nada além disso. As pessoas não exploram a carne de porco, que é muito versátil. Há pouca informação sobre ela. Então, o que mais surpreende na Casa do Porco é comer o menu “De tudo um porco” e perceber essa característica. Não é o tipo de menu que você cansa por comer a mesma proteína em todas as etapas. Você nem lembra que o prato anterior era com porco também de tão diferente que é um preparo do outro. Devido a todos os preconceitos, há uma restrição no conhecimento das receitas e técnicas. Falar em porco, no Brasil, é falar de leitão, no Natal ou na Páscoa. Não se come a carne no dia a dia, apesar de ser extremamente barata.

Qual o prato mais vendido?
É o menu degustação “De tudo um porco”, olha que coisa louca. Todo chef sonha um dia em ter um restaurante que só venda menu fechado. Vendo uns 10 mil por mês. Quase enlouqueço. Mas isso também é resultado do conceito completo da Casa do Porco. Todo mundo achava que eu estava louco de, no meio da crise, sair do Attimo (também em São Paulo), para abrir um bar no centrão vendendo proteína única.

Você também serve cabeça do porco...
A cabeça de porco só sai com reser­va, a gente só disponibiliza duas ou três por dia. E é só para quem é a­paixonado mesmo pelo animal. Eu vejo que a minha missão, cada dia mais, é desmistificar tudo o que se fala sobre o porco. A gente faz, inclu­sive, um projeto chamado Porco Mundi, em que chefs de outros países mostram a cultura do porco da sua terra de origem. Eu quero que a Casa do Porco seja um tipo de enciclo­pédia Barsa e quero continuar der­rubando preconceitos. Hoje, a mi­nha maior missão é andar. Vou contar em livro a história do porco no Brasil, junto com Rusti Marcelino.

Fale dessas pesquisas.
A primeira moeda de troca do Brasil não foi o ciclo do café, foi o toicim, a banha do porco. Porque os tropeiros e bandeirantes iam desmatando, plantavam milho e abóbora e soltavam porco por onde passavam. E o toicim era usado na indústria para fazer graxa, lamparina, sabonete, conservar carne. Esses porcos antigos eram de banha, numa proporção média de um animal com 100 quilos, 70 deles eram de pura banha, e quase não se comia a carne que sobrava. Lá por 1940 e pouco, as grandes indústrias farmacêuticas começaram a pagar médicos e pessoas ligadas à gastronomia para falarem que a banha fazia mal à saúde, permitindo a entrada maciça no mercado do óleo vegetal e gordura trans.

Tudo o que você faz, repercute, como o novo prato hot pork (cachorro-quente artesanal).
Venho trabalhando nessa salsicha há uns três anos. Na verdade, isso começou porque não achava legal meus filhos comerem coisas como presunto e salsicha, pelo tanto de corantes e conservantes - contando ainda que meu filho mais velho é muito alérgico a essas coisas. Mas eu pensava também que quando eles crescessem, iam sofrer bullying por não comer nada dessas coisas, daí comecei a trabalhar nes­ses produtos artesanais.

O que é um porco de qualidade?
A primeira coisa é comprar a carne num lugar que lhe passe confiança. Não dá para comprar porco abatido na feira. Compre em lugares especializados, com embalagens que carreguem a etiqueta de SIF (Serviço de Inspeção Fiscal) e selos de inspeções. Isso serve para qualquer proteína. Não compre porco morto no meio da feira livre, eu não como esse tipo de carne. Eu não sei como o animal foi criado. Outro er­ro, para mim, é o leitão à pururuca. A pele do bicho estoura toda, fica hor­rível, se usa temperatura alta de­mais e óleo. O meu porco é doura­do e crocante igual se come na Europa.

Nas minhas andanças para o livro, tenho ficado muito próximo de pesquisadores e descobrindo coisas como as drásticas mudanças genéticas que o animal sofreu para reverter a proporção de banha e carne para atender o mercado consumidor. Essa demanda do consumidor, a nossa demanda, é também responsável pela diferença da qualidade entre os animais de antigamente, melhores, e os de hoje. Somos responsáveis por isso.