Luto

Morre Maria Teresa Horta, escritora feminista portuguesa, aos 87 anos

Autora preferia ser chamada de "poetisa" e enfrentou a ditadura salazarista com versos eróticos

A escritora portuguesa Maria Teresa Horta chegou a ser eleita pela BCC uma das "100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo - Divulgação

Morreu nesta terça-feira (4), aos 84 anos, a escritora Maria Teresa Horta, um dos principais nomes da poesia e da militância feminista portuguesa. A morte da autora foi anunciada por sua editora, a Dom Quixote, nas redes sociais.

“É com profunda tristeza e sentida mágoa que a Dom Quixote, a pedido da sua família, informa que a escritora Maria Teresa Horta faleceu, esta manhã, em Lisboa”, afirma o comunicado.

“Uma perda de dimensões incalculáveis para a literatura portuguesa, para a poesia, o jornalismo e o feminismo, a quem Maria Teresa Horta dedicou, orgulhosamente, grande parte da sua vida”, segue a nota.

A editora também ressaltou que Horta foi uma “reconhecida defensora dos direitos das mulheres e da liberdade” e que chegou a ser eleita pela BCC uma das “100 mulheres mais influentes e inspiradoras de todo o mundo”.

Nascida em 20 de maio de 1937, em Lisboa, Maria Teresa Horta gostava de ser chamada de “poetisa” e discordava de suas colegas mulheres que preferiam o rótulo de “poeta”, como os homens.

— Eu não sou um. Sou uma. O feminino não diminui ninguém — justificou-se numa entrevista ao GLOBO em 2018.

Feminista e de esquerda, a Horta navegava entre a poesia e a ficção, num diálogo profícuo com a tradição literária em língua portuguesa, marcado por uma exploração corajosa do corpo e do desejo femininos.

Publicou alguns de seus livros mais valentes quando Portugal ainda vivia sob a ditadura salazarista. Em 1971, os poemas eróticos de “Minha senhora de mim” escandalizaram o regime, que proibiu o livro.

A poetisa foi espancada na rua por três homens, que gritavam: “Isto é para aprenderes a não escreveres como escreves”.

Mas ela não se intimidou. No ano seguinte publicou, em parceira com as escritoras Maria Isabel Barreno (1939-2016) e Maria Velho da Costa (1938-2020), as “Novas cartas portuguesas”, uma releitura feminista das “Cartas portuguesas”, correspondência amorosa atribuída à freira Mariana Alcoforado (1640-1723), que se tornou um clássico literário.

As “três Marias”, como ficaram conhecidas, escreviam para livrar as mulheres portuguesas da clausura, como aquela em que vivia Mariana. Uma das cenas das “Novas cartas” descreve Mariana se masturbando em sua cela no convento: “E a noite devora, vigilante, o quarto onde Mariana está estendida. O suor acamado, colado à pele lisa, os dedos esquecidos no clitóris, entorpecido, dormente”. O livro foi reeditado no Brasil no ano passado pela Todavia.

A ditadura processou as “três Marias”, que receberam apoio feministas de todo o mundo. A filósofa francesa Simone de Beauvoir (1908-1986) organizou duas passeatas em Paris em defesa das portuguesas. Elas seriam julgadas em maio de 1974, mas, em 25 de abril a ditadura caiu.

— Não acho que eu seja uma poetisa erótica mais do que sou uma poetisa da liberdade. Não conheço coisa mais bonita que o prazer. Não compreendo por que foi tanto escândalo — disse ao Globo a autora de “Poemas eróticos” e “Azul cobalto”, publicados no Brasil pela Oficina Raquel. — Escrevo sobre o corpo porque tenho um corpo. Por que sou mulher não teria um corpo? Por que os homens podem escrever tudo?

"Poemas do Brasil"
Em 2016, Horta lançou em Portugal o romance em versos “Anunciações”, que imagina a relação de amor e sexo da Virgem Maria e do Arcanjo Gabriel. No ano seguinte, a obra lhe rendeu o quarto lugar do Prêmio Oceanos, empatada com o romancista brasileiro Bernardo Carvalho, autor de “Simpatia pelo demônio”.

Ela recusou o prêmio “por respeito pela Literatura, por respeito pelas minhas leitoras e os meus leitores, e sobretudo pelo respeito que devo a mim própria e à minha já longa obra”.

Horta veio duas vezes ao Brasil. Em 1974, lançou “As novas cartas” no Rio. Passou por São Paulo, onde participaria de um programa de rádio.

Mas foi-se embora quando soube que a entrevista seria vigiada por um censor da ditadura militar. No aeroporto, a caminho do Rio, foi abordada por dois brucutus, que lhe aconselharam a apressar sua volta a Portugal.

“No Brasil as pessoas desaparecem muito”, avisaram. Ela ignorou o conselho e passou mais dois dias por aqui.

Voltou ao país em 2007, quando foi homenageada num congresso de professores de Literatura Portuguesa, em São Paulo. Em seguida, fez uma viagem de carro com a professora Marlise Vaz Bridi, passando por Paraty e pelo Rio.

Horta passou toda a viagem escrevendo em pedaços de papel. Eram poemas melódicos, inspirados nas paisagens e em diálogo com a literatura brasileira (Clarice Lispector, Hilda Hilst, Cecília Meireles). Os “Poemas do Brasil” foram publicados em 2009 pela Brasiliense. O livro não foi editado em Portugal.

Em 2018, Horta compareceu remotamente da 16ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Problemas de saúde a impediram de viajar de avião e a escritora participou por vídeo da mesa que juntou as brasileiras Laura Erber e Júlia de Carvalho Hansen.