Trump e a ruptura do pós-guerra: o segundo mandato como fim da ideologia liberal
Em seu segundo mandato presidencial, Donald Trump encarna não apenas uma figura política controversa, mas um movimento que visa desmontar as bases do pacto liberal que moldou o mundo após a Segunda Guerra Mundial. A eleição de Trump em 2016 já representava um sintoma da crise do consenso liberal; sua possível volta ao poder — agora de maneira mais autoritária, estratégica e desinibida — pode representar o colapso definitivo desse consenso.
O fim do pós-guerra
O mundo que emergiu do horror da Segunda Guerra Mundial foi guiado por um ideal: garantir que a catástrofe nunca mais se repetisse. A partir disso, consolidou-se uma ordem internacional baseada em instituições multilaterais (como a ONU, a OTAN, o FMI), na contenção do nacionalismo extremado, e no fomento ao livre comércio, aos direitos humanos e à cooperação entre Estados soberanos. Em outras palavras: a ideologia liberal se tornou a ideologia dominante do Ocidente.
Trump representa uma ruptura com esse arranjo. Sua retórica “America First”, seu desprezo por alianças internacionais e sua hostilidade às instituições transnacionais sinalizam o abandono dessa arquitetura. Seu projeto, se levado às últimas consequências, visa instaurar uma nova lógica — ou melhor, ressuscitar uma lógica anterior ao liberalismo global: a lógica do mercantilismo nacionalista e da xenofobia institucionalizada.
Do liberalismo ao mercantilismo
O liberalismo econômico baseia-se na ideia de que o comércio livre entre nações produz prosperidade mútua. Essa noção foi abraçada tanto por conservadores quanto por progressistas ao longo do século XX. Já o mercantilismo — paradigma dominante antes do Iluminismo e das revoluções liberais — via o comércio como um jogo de soma zero: o ganho de um país era a perda de outro. Trump adere, intuitivamente, a essa visão pré-moderna da economia global. Tarifas, guerras comerciais, chantagens econômicas e isolamento produtivo não são distorções em seu programa — são sua essência.
Isso não significa um retorno ingênuo ao protecionismo industrial do século XIX, mas uma reconfiguração cínica: uma elite econômica transnacional que lucra com a desregulação doméstica ao mesmo tempo que estimula o ódio ao estrangeiro como válvula de escape popular.
Xenofobia como política de Estado
Ao romper com o pacto do pós-guerra, Trump também solapa os mecanismos que buscaram conter o nacionalismo étnico e a intolerância. O acolhimento de refugiados, a promoção dos direitos humanos e o combate ao racismo institucional foram marcas — ainda que muitas vezes simbólicas — do regime liberal internacional. Em contrapartida, o trumpismo abraça a exclusão: muros, deportações em massa, islamofobia, anti-imigração latina, linguagem de “pureza nacional” e até flertes com teorias conspiratórias racializadas.
A promessa do liberalismo, de que a história caminhava em direção a uma maior integração entre os povos, é ridicularizada. O que se impõe é um retorno brutal à identidade como destino, à cidadania como privilégio racial, e ao Estado como instrumento de exclusão.
O desmonte do pacto global
Trump não é um erro de percurso. Ele é o sintoma de um esgotamento. A ordem liberal, corroída pelas suas próprias contradições — desigualdade, hiperfinanciarização, alienação cultural — abriu espaço para a ascensão de um projeto autoritário. O pacto global do pós-guerra não ruiu apenas pela ação externa, mas pela implosão de dentro: elites que abandonaram o povo, democracias sequestradas pelo capital, e instituições esvaziadas de legitimidade.
O trumpismo, então, surge como uma contra-revolução. E não mais apenas contra a esquerda, mas contra a própria modernidade liberal.
Epílogo: a terceira Guerra Fria?
Se a Segunda Guerra Mundial produziu o mundo liberal e a Guerra Fria consolidou sua hegemonia, o novo ciclo liderado por figuras como Trump pode ser entendido como o prenúncio de uma Terceira Guerra Fria — uma disputa não apenas entre Estados, mas entre formas de vida. Entre o cosmopolitismo e o tribalismo. Entre o universalismo e o identitarismo. Entre a abertura e o fechamento.
Trump não é só um presidente. É um fato histórico. Um divisor de eras. E talvez, o arauto de um novo mundo que se ergue sobre as ruínas do antigo.
Contraponto por Luciano Bivar
Mas uma coisa fica clara: a democracia tem ainda uma falha mercantilista ao abrir espaço para aventureiros, populistas, loucos de todo gênero, posto que jamais devemos esquecer: antes do discurso vem o homem, com seus desvios congênitos, que são mentirosamente, escondidos em juras democráticas.
Então, não é o fim da democracia Liberal, mas um fato episódico o qual vivemos, que nem os mais sofisticados mecanismos da IA poderá prever. O homem é, e será sempre o homem, desde a época da pedra, com seus defeitos e acertos. Mas a prosperidade global da história do homem, jamais poderá prescindir do cosmopolismo pelo tribalismo.
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