O Supremo se perdeu no próprio personagem?
A expressão “perder-se no próprio personagem” indica o estado psicológico de atores que estão a vivenciar, com tanta intensidade, os seus papéis, que passam a “incorporá- los à própria pessoa, confundindo a vida real com a fantasia de peças teatrais, filmes e novelas em que atuam.
Talvez essa expressão ajude a explicar o que tem acontecido com a suprema corte brasileira, desde que foi aberto o “inquérito do fim do mundo”, em 2019.
É que a pretexto de defender a sua própria visão de democracia, dentre outras bandeiras que escolheu para “tutelar”, o STF “saiu de si”, passando a atuar como se fora um “heróico personagem”, com poderes quase absolutos, que se sobrepõem à separação de poderes, ao pacto federativo e a outros pilares de nossa república, como se os fins que busca atingir pudessem justificar os meios que utiliza.
Nesse cenário de luta imaginária, contra as ameaças que alega enxergar, na Corte inexiste debate interno ou discordância entre os seus integrantes. Rusgas antigas foram esquecidas, agressões pessoais, feitas em público, foram superadas pelos ministros, condenações a políticos alinhados ideologicamente foram anuladas, pois “ninguém pode soltar a mão de ninguém”, na batalha contra “inimigos” do estado de direito, “fascistas”, “negacionistas das vacinas”, “críticos das urnas eletrônicas”, “extremistas de direita”, “propagadores de fake news” e outros “golpistas”, a quem são postos rótulos como tais, não importando a sua efetiva correspondência com os conceitos e, principalmente, com os fatos.
Sob esse “perfil”, o Tribunal exerce “competências” não escritas na Constituição, criminaliza condutas sem base em lei, ignora o sistema acusatório, cria barreiras ao livre exercício da advocacia, assim como improvisa ritos e procedimentos, como se a legalidade, a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal fossem escolhas e não condições indispensáveis à idoneidade e validade da jurisdição.
A Corte tem legislado, falado fora dos autos e se sobreposto aos demais poderes e órgãos, indo muito além da Constituição, a ponto de alterar a sua própria jurisprudência sobre prerrogativa de foro, firme há muitos anos, para ali processar criminalmente quem bem entender, por conta daquilo que, a partir de suas concepções político-ideológicas, classifica como sendo violações ao estado democrático de direito.
O STF também tem se posto a debater a conveniência e o conteúdo de leis, interagido com líderes de partidos políticos, pautado-se pela agenda 2030 da ONU, relativizado a imunidade parlamentar, admitido a legitimidade de partidos políticos para requerer medidas criminais contra adversários, assim como colocado em sua zona de influência a palavra final sobre normas que o desagradam, sem que exista nelas qualquer vício de inconstitucionalidade, como, por exemplo, a lei do voto impresso e o marco regulatório das terras indígenas.
Outro exemplo bem marcante da desconexão desse “personagem” com a realidade constitucional é o caso da ADPF das Favelas, em que a Corte, pela via de decisão elaborada conjuntamente pelos seus integrantes (fruto de uma modalidade de deliberação não prevista legal e regimentalmente), determinou, dentre outras providências, a abertura de inquérito pela polícia federal (para apurar a ocupação de espaços públicos por facções) e propôs políticas públicas relacionadas à segurança pública do Rio de Janeiro, inclusive sobre como a polícia estadual deveria (ou não) atuar em certas áreas da capital daquele estado, onde só entra quem o crime organizado permite.
Como noticiado por alguns veículos jornalísticos, a Corte estaria “mandando recados” ao Parlamento, e até mesmo ao Executivo federal, pondo-se contra o projeto de lei que visa anistiar pessoas acusadas de golpe de estado, com penas que podem chegar a até 17 anos, dentre elas um morador de rua e uma cabeleireira, “armada” com batom.
Mais recentemente, o Min. Moraes suspendeu o processo de extradição de um traficante internacional à Espanha, assim como oficiou ao embaixador daquele país, por conta de ter sido negada a extradição de um jornalista brasileiro, ali refugiado e aqui processado, sob a acusação de propagar “fake news”, ao argumento de que estaria havendo quebra do princípio de reciprocidade entre Brasil e Espanha, como se houvesse equivalência entre os atos dessas duas pessoas e fosse função de um juiz do STF promover esse tipo de questionamento à soberania de um outro país.
Os exemplos acima mostram que esse “personagem”, todo poderoso e midiático, vestido de “salvador da pátria”, que participa da política, posa para fotos, dá entrevistas, viaja o mundo e comenta sobre tudo, está completamente fora do esquadro da realidade constitucional em que deveria estar enquadrado.
A anabolização funcional e o desvio de rota institucional do STF, além de injustiça, instabilidade e insegurança jurídica ao país, criam precedentes negativos, que afetam a vida do cidadão comum e jogam a Corte em descrédito, perdida em um emaranhado de decisões, que, apesar de juridicamente nulas, geram danos concretos e irreparáveis a todos que por elas são afetados, colocando o Tribunal, cada vez mais, preso a uma rota que, claramente, não terá saída saudável.
A grande verdade é que, impulsionada pelo aplauso fácil de alguns comensais que circundam os seus poderes e pelo maciço (e inexplicável) apoio da mídia tradicional, que dá aos fatos a versão que lhe interessa, a Corte politizou-se, ordinarizou-se e sente-se encorajada a continuar avançando para muito além de seu papel constitucional e de qualquer limite.
O STF tem obrigação de estar longe da mídia, de confrontos pessoais e da política. Não pode ser protagonista de nada, não pode propor nem combater coisa alguma, muito menos ir além de julgar, pois a sua face real, de ser “apenas” a instância extraordinária constitucional brasileira, é (ou deveria ser) muito maior do que a fantasia de “viver” o roteiro, autoritário e incoerente, de um personagem que lhe desvirtua, desgasta e embaraça.
* Procurador aposentado do estado de Pernambuco, conselheiro de Administração/IBGC.
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