Saúde

Entidades médicas criticam resolução do CFM que restringe terapias hormonais para menores trans

Conselho proibiu bloqueio puberal e restringiu acesso à hormonioterapia a menores de 18 anos e a determinadas cirurgias a menores de 21

Membros de grupos LGBTQ+ seguram uma grande bandeira do Orgulho Trans - Marvin Recinos / AFP

Cinco entidades médicas divulgaram, nesta segunda-feira, um posicionamento conjunto com críticas à nova resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), publicada na semana passada, que restringe o acesso de crianças e adolescentes trans à terapia hormonal e a determinadas cirurgias no Brasil.

No texto, as sociedades manifestam “preocupação” com a nova norma e citam “danos significativos à saúde desta população que já vive em condições de vulnerabilidade”.

“Quando realizada por profissionais com formação e experiência na área, em caráter multidisciplinar, seguindo diretrizes internacionais de sociedades globalmente reconhecidas, o bloqueio puberal e a terapia hormonal em indivíduos jovens permitem atenuar o sofrimento do indivíduo, reduzir o risco de transtornos psiquiátricos graves e gerar novas evidências científicas a respeito das terapias propostas”, argumentam as entidades.

O texto foi assinado pela Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM); pela Associação Brasileira de Estudos em Medicina e Saúde Sexual (ABEMSS); pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU); pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (FEBRASGO) e pela Associação Brasileira de Obstetrícia e Ginecologia da Infância e Adolescência (SOGIA-BR).

Entenda as mudanças
Um dos principais pontos abordados na nova resolução do CFM é sobre a hormonioterapia, que envolve o uso de testosterona e estrogênio para induzir características biológicas do gênero com a qual a pessoa trans se identifica.

As regras antigas, de 2019, autorizavam o início a partir dos 16 anos. Agora, apenas maiores de 18 poderão acessar o tratamento.

Em coletiva de imprensa, o relator da nova resolução e conselheiro federal do CFM pelo Rio de Janeiro, Raphael Câmara, argumentou que estudos analisados pelo Conselho teriam mostrado um aumento nos casos de arrependimento pós-transição, por isso o endurecimento das regras. Câmara, porém, disse que não há dados sobre o contexto brasileiro e reconheceu que as evidências avaliadas são incompletas.

No posicionamento, as entidades médicas ligadas ao cuidado de pessoas trans rebatem o cenário citado pelo CFM e citam que “já existem diversos estudos mostrando baixas taxas de arrependimento e melhora da qualidade de vida de pessoas transgênero sob terapia hormonal ou submetidas a procedimentos cirúrgicos”.

“As diretrizes internacionais recomendam que o início da terapia hormonal pode ser considerado a partir dos 16 anos de idade para indivíduos que apresentem capacidade mental suficiente para compreender e consentir com o tratamento, junto aos pais e/ou responsáveis legais. Postergar a terapia hormonal por mais dois anos, sem evidências que o justifiquem, pode acarretar danos emocionais e psiquiátricos”, afirmam as sociedades.

Além disso, citam que a restrição imposta pelo Conselho pode “levar ao uso de hormônios sem aconselhamento médico, algo comum nesta população por uma histórica dificuldade de acesso aos serviços de saúde”.

E reafirmam que a terapia hormonal está "associada a melhora da qualidade de vida e redução de morbidades psíquicas como humor deprimido, depressão, ansiedade e isolamento social”.

Outro ponto trazido pela nova resolução do CFM é a elevação da idade mínima para a realização de procedimentos cirúrgicos com potencial efeito esterilizador de 18 para 21 anos.

Os procedimentos do tipo são a neovulvovaginoplastia (criação de uma vagina com retirada de testículos para mulheres trans) e a histerectomia e ooforectomia bilateral (remoção do útero e dos ovários para homens trans).

Na coletiva, Câmara defendeu que a nova regra era baseada na lei federal sobre acesso à vasectomia e laqueadura, que são permitidos apenas após os 21 anos, devido às cirurgias mencionadas promoverem “o mesmo efeito” nas pessoas trans.

No entanto, as entidades médicas defendem que, no caso da população trans, são indivíduos que “já atingiram a maioridade legal, estão em acompanhamento multidisciplinar pelo período mínimo de um ano e apresentam plena capacidade de consentir o tratamento”.

A terceira mudança alvo de críticas trazida pela norma do CFM diz respeito ao bloqueio puberal, estratégia reversível utilizada para interromper a produção de hormônios sexuais em crianças e adolescentes trans. Com isso, impede o desenvolvimento de características físicas do sexo de nascimento até que esses jovens tenham idade suficiente para dar início à transição de gênero.

A resolução anterior autorizava a realização do bloqueio no Brasil a partir do início da puberdade e em caráter experimental dentro de protocolos de pesquisa de hospitais universitários e/ou de referência para o Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, a prática não é mais permitida.

O tratamento segue autorizado apenas para casos médicos de crianças com puberdade precoce ou outras doenças endócrinas.

Câmara citou que diversos países, como Reino Unido, Suécia, Noruega e Finlândia, alteraram seus protocolos recentemente para restringir o acesso à estratégia.

As entidades médicas, porém, argumentam que o bloqueio “permite um tempo maior para consolidação da identidade de gênero, sendo completamente reversível”.

Além disso, lembram que o procedimento era permitido no Brasil “somente em caráter experimental, como parte de protocolos desenvolvidos nos centros de referência que aplicam critérios rigorosos para conduzir estes casos”.

E consideram "imprudente extrapolar dados de complicações e taxas de arrependimento de países onde o bloqueio puberal tenha sido conduzido de forma menos criteriosa”.

“Importante salientar que o bloqueio puberal só deve ser considerado após o início da puberdade (...) Em condições fisiológicas a puberdade ocorre entre 8 e 13 anos nas meninas e 9 e 14 anos nos meninos. Uma vez que a maioria das pessoas com IG (incongruência de gênero) reconhece sua identidade de gênero ainda na infância ou na adolescência, a intervenção com agonistas de GnRH (bloqueio puberal) acontece quando a identidade de gênero está mais consolidada”, defendem as entidades médicas.

Sobre os riscos, como um impacto na composição óssea e na fertilidade, citados pelo CFM, as sociedade afirmam que “estudos recentes mostram que a redução da densidade mineral óssea durante os anos de bloqueio puberal é recuperada após a suspensão da medicação” e que “não existem evidências que suportem prejuízo da fertilidade com esta modalidade de terapia, sendo a mesma restaurada após interrupção do bloqueio”.

Taxa de arrependimento é baixa, afirmam entidades
Em relação ao suposto crescimento nas taxas de arrependimentos, citado pelo CFM, as sociedades dizem que, embora estudos de fato tenham encontrado resultados heterogêneos, trabalhos mais rigorosos apontam para percentuais baixos, por vezes inferiores a 1%.

Um deles, que analisou o uso da estratégia na Holanda, primeiro país a introduzir um protocolo de tratamento para crianças e adolescentes com disforia de gênero, de fato não encontrou níveis altos de arrependimento pós-transição.

Publicado no The Lancet Child & Adolescent Health, em 2022, o trabalho acompanhou 720 indivíduos que iniciaram a terapia com bloqueio hormonal antes dos 18 ao longo de cerca de duas décadas.

Os resultados mostraram que 704 (98%) continuavam com a terapia hormonal após 20 anos, ou seja, não haviam interrompido a transição.

Além disso, em relação aos outros 2%, os pesquisadores afirmaram não ser possível confirmar que o arrependimento tenha sido a causa do abandono, já que pessoas transgênero podem simplesmente não desejar usar hormônios nem realizar intervenções cirúrgicas.

O estudo foi o maior até hoje a investigar a continuação do tratamento em pessoas trans que o iniciaram ainda na adolescência.

Críticas à medida
Antes mesmo de ser publicada, a resolução já era alvo de críticas, principalmente pela restrição ao tratamento para crianças e adolescentes trans.

O Ministério Público Federal (MPF) instaurou um procedimento para apurar a legalidade da resolução após uma denúncia da Associação Mães pela Diversidade e da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra).

O procurador regional dos Direitos do Cidadão no Acre, Lucas Costa Almeida Dias, determinou que o CFM preste esclarecimentos sobre os fundamentos técnicos e jurídicos da resolução em até 15 dias.

Ele apontou decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) em sentido contrário à norma e reforçou a despatologização da transexualidade pela Organização Mundial da Saúde (OMS).

Em nota, a Antra diz estar "diante de mais uma ação coordenada que dialoga com a crescente agenda antitrans em nível global, marcada por políticas e discursos que atacam diretamente a existência, a dignidade e os direitos básicos da nossa população".

A associação classifica a medida como uma "decisão política" que "ignora evidências científicas".

"A revogação de diretrizes que garantiam acompanhamento e cuidado adequados para crianças e jovens trans sem nenhuma justificativa aceitável representa um ataque deliberado ao futuro dessas pessoas, com impactos profundos e irreversíveis em sua saúde mental, segurança e bem-estar coletivo de nossa comunidade", continua a entidade.

Os grupos ativistas pelos direitos da população LGBTQIAP+ citaram ainda a preocupação de familiares de crianças com variabilidade de gênero ou adolescentes trans que sofrem de disforia de gênero e que têm acesso a procedimentos terapêuticos como bloqueio puberal e hormonização cruzada pelas regras anteriores.

Além disso, a Antra destaca que jovens com 18 anos de idade já completos se preparavam para realização, em breve, de cirurgias de redesignação sexual.

OMS vai criar protocolo
Em 2019, a OMS retirou oficialmente a transexualidade da lista de doenças ou distúrbios mentais.

A incongruência e disforia de gênero seguem como condições, por isso são passíveis de tratamento com a hormonioterapia e as cirurgias.

Mas o fato de a pessoa se identificar como trans deixou de ser considerado uma patologia.

Quatro anos depois, em 2023, a organização anunciou a criação dos primeiros protocolos globais para o cuidado de pessoas trans. No entanto, as diretrizes, que ainda estão sendo elaboradas, não devem abordar o bloqueio hormonal em crianças e adolescentes.

Isso porque a OMS esclareceu que o "escopo abrangerá apenas adultos". Segundo a organização, "a base de evidências para crianças e adolescentes é limitada e variável em relação aos resultados de longo prazo do tratamento de afirmação de gênero para crianças e adolescentes".