ARGENTINA

Quem foi Esther Ballestrino, essencial para a formação política do papa e desaparecida na ditadura

Professora de química do jovem Jorge Mario foi uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio após o desparecimento da filha

Esther Ballestrino - reprodução

Antes de iniciar a trajetória religiosa que terminaria no cargo mais alto da Igreja Católica em 2013, o jovem Jorge Mario Bergoglio estudava química aos 16 anos. A professora, Esther Ballestrino, causou um impacto profundo na vida de Francisco, que se recordou dos ensinamentos durante toda sua vida e relatou parte deles na autobiografia "Esperança". De imigrante a desaparecida política na ditadura argentina, Esther foi uma peça-chave na formação política do Pontífice, morto na última segunda-feira no Vaticano.

Nascida no Uruguai, Esther se mudou com a família ainda na infância para o sul do Paraguai, onde passou a maior parte da vida. Ela se formou em Ciências Químicas em Assunção, e foi lá que começou a vida política. Integrante do Partido Revolucionário Febrerista, logo se tornou uma referência da esquerda paraguaia durante a ditadura militar de Higinio Moríngio (1940-1948). Em 1947, precisou deixar o país e se exilou na Argentina.

Na nova casa, se casou com outro militante exilado e teve três filhas: Ester, Mabel e Ana María. No país, passou a lecionar química, e foi assim que conheceu o jovem que viria a ser Papa seis décadas depois. Em sua autobiografia, Francisco a descreve como "uma mulher respeitosa, nada fanática, dotada de um grande senso de humor".

O Pontífice relembrou um episódio em que entregou um relatório do laboratório sem realizar um último experimento, alegando que não era preciso fazer todos já que os outros resultados já haviam provado a hipótese como correta. Foi quando Esther afirmou que "escrupulosidade e precisão são tudo em nosso trabalho. As razões da ciência devem ser apoiadas empiricamente", uma lição que Francisco jamais esqueceu e o fez entender a "cultura do trabalho".

"Mas aquela grande mulher fez muito mais: me ensinou a pensar. Quero dizer, pensar politicamente", escreveu o Papa no livro. Ele conta que as primeiras conversas sobre política foram norteadas pela execução de Julius e Ethel Rosenberg, casal estadunidense condenado por espionagem para a União Soviética em 1953. "Lembro que foi um dos primeiros temas de debate com Esther, que me contou e deu sua versão como ativista", relembrou Francisco, afirmando que a professore o convidava a ler e discutir quando tinham ideias discordantes.

O Papa e a política
A posição de Francisco alinhada ao peronismo, apesar da família antiperonista, polarizou a afinidade dos argentinos em relação a ele até na ocasião de sua morte. Nascido em "uma família paradoxalmente elitista, porque não éramos ricos, mas pobres que haviam ascendido socialmente até a classe média", Jorge Mario Bengoglio cresceu rodeado de calorosas discussões políticas nos almoços em família.

Aos poucos, Jorge Mario foi "inspirando certa simpatia" pelas reformas sociais que Juan Domingo Perón implementava. Anos mais tarde, ele se recordou de uma discussão com um tio em que se colocou ao lado da população pobre pela primeira vez. "De certo modo, aquele foi um batismo público da minha paixão política. (...) Uma tensão, uma inquietude social que mais tarde busquei e encontrei cada vez mais na Igreja", relatou.

Assim, o despertar político de Jorge Mario Bengoglio aconteceu cerca de três anos antes de seu início na vida religiosa, quando ele tinha 16 anos. O contexto social, aliado aos debates com Esther, o fizeram manter a política no centro de sua trajetória. O carinho pela professora era tanto que, até a sua morte, ele mantinha uma foto dela na Casa de Santa Marta, onde morava no Vaticano. "Era uma mulher extraordinária, a quem eu amava muito", escreveu.

Mães da Praça de Maio
O destino de Esther Ballestrino, no entanto, não foi tão longevo quanto o de Francisco. Em 1977, a ditadura militar argentina sequestrou sua filha, e a partir daí ela passou a buscar, junto com outras mães de desaparecidos, informações sobre seus filhos. Esther foi uma das fundadoras das Mães da Praça de Maio, e procurou incessantemente Ana María até sua libertação, quatro meses depois e grávida de sete meses.

Ela logo tirou as filhas do país, mas Esther e o marido seguiram na Argentina para lutar contra mais um regime militar. Francisco se recorda em "Esperança" que o último encontro com a antiga professora foi em 1977, quando ela o chamou para dar a extrema unção à sogra. Chegando lá, o futuro Papa descobriu que, na verdade, Esther queria sua ajuda para esconder os livros políticos de sua biblioteca, "porque estava sendo vigiada".

Em dezembro do mesmo ano, Esther foi à igreja de Santa Cruz, em Buenos Aires, um ponto de encontro de familiares de desaparecidos para coordenar ações coletivas. Após a reunião, ela foi sequestrada por militares do Grupo de Tarefas da Escola de Mecânica Armada (ESMA) que levariam também outras 11 pessoas em três dias.

Eles foram levados para a ESMA, que se tornou o principal local de tortura da ditadura argentina, e seus corpos foram encontrados no mar na província de Buenos Aires dias depois. Esther e outros desaparecidos foram enterrados como indigentes no cemitério municipal de General Lavalle, em 20 de dezembro. Só em 2005, quase três décadas depois de sua morte, o corpo da militante foi exumado e identificado, assim como de outras fundadoras das Mães da Praça de Maio. Exames de DNA ajudaram a identificar os restos mortais e a perícia estabeleceu que os sequestrados foram jogados com vida no mar, de aviões que davam o "voo da morte".

Então arcebispo de Buenos Aires, Jorge Mario Bergoglio deu a autorização para que os corpos pudessem ser enterrados na igreja de Santa Cruz. Em 2010, ele depôs na Justiça argentina como testemunha de crimes cometidos pela ditadura no ESMA. Perguntado sobre o que se lembrava de Esther, ele afirmou que ela foi "uma mulher que me ensinou a trabalhar, a ser exato nas análises. Uma mulher que me iniciou no conhecimento de política, me fazia ler. Devo muito a ela".

No ano seguinte, os 16 responsáveis pelo sequestro, tortura e assassinato dos "12 da igreja Santa Cruz" foram condenados, a maioria com prisão perpétua. Já como Papa, Francisco visitou a filha de Esther, Ana María, durante uma visita ao Paraguai, que se surpreendeu com a memória do Pontiífice. "Ele se lembrava de tudo, incluindo do que eu vivi no campo de concentração, a partir do relato da minha mãe. Foi muito impactante", afirmou ela.

Francisco também se encontrou com Anita, filha de Ana María e nascida no exílio logo após a libertação do centro de tortura. As duas mulheres seguiram o exemplo de Esther e fazem parte de esforços de conservação da memória argentina sobre os crimes da ditadura. "Como sua mãe, como sua vó — cujo rosto está em um retrato que tenho no meu pequeno apartamento na Casa de Santa Marta —, como as Mães da Praça de Maio que mostraram o caminho, Anita segue lutando por justiça", afirmou o Pontífice em 2024 após a visita.