Gaza

Fome em Gaza leva a saques dois meses após bloqueio israelense à ajuda humanitária

Autoridades israelenses dizem buscar pressionar o Hamas a libertar os reféns, mas ONU alerta que tática militar pode ser considerada crime de guerra

Segundo Escritório para a Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU, a Faixa de Gaza enfrenta provavelmente a pior situação humanitária desde que o início do conflito - Eyad Baba/AFP

Dois meses após Israel fechar todas as passagens para a Faixa de Gaza, impedindo a entrada de alimentos, combustível e medicamentos, organizações humanitárias anunciaram que seus estoques de ajuda alimentar se esgotaram — e que a fome em massa pode ser iminente no enclave.

Autoridades israelenses afirmam que o bloqueio do território e a retomada da ofensiva militar têm como objetivo pressionar o grupo terrorista Hamas a libertar os reféns ainda mantidos em cativeiro, mas o alto comissariado da ONU para os direitos humanos alertou nesta semana que o uso da fome como tática militar constitui crime de guerra.

“A ajuda, e as vidas civis que ela salva, nunca devem ser moeda de troca”, disse Tom Fletcher, subsecretário-geral da ONU para assuntos humanitários e coordenador de ajuda emergencial, em comunicado na quinta-feira. “Bloquear a ajuda faz civis morrerem de fome. Deixa-os sem apoio médico básico. Rouba-lhes a dignidade e a esperança. Impõe uma punição coletiva cruel. O bloqueio da ajuda mata”, acrescentou ele, enfatizando que o “movimento humanitário é independente, imparcial e neutro” e que acredita que “todos os civis merecem proteção igualmente”.

A escassez de alimentos e a falta de perspectiva sobre a entrada de mais ajuda no território levaram, segundo autoridades humanitárias, ao aumento dos saques a estoques de alimentos e cozinhas comunitárias em Gaza. A situação, dizem, revela o desespero crescente diante da fome.

Moradores palestinos e representantes de agências de ajuda relataram pelo menos cinco episódios de saque ocorridos na quarta-feira em diversas áreas do enclave, incluindo em estabelecimentos comerciais e no principal complexo da UNRWA, a agência das Nações Unidas para refugiados palestinos, na Faixa de Gaza.

— O saque é um sinal grave do quão séria a situação se tornou, da disseminação da fome, da perda de esperança e do desespero entre os moradores, bem como da ausência da autoridade da lei — disse à agência Reuters Ajmad al-Shawa, diretor da Rede de Organizações Não Governamentais Palestinas (PNGO, em inglês) no enclave.

Milhares de palestinos deslocados invadiram o complexo da UNRWA na Cidade de Gaza na noite de quarta-feira, roubando medicamentos da farmácia da agência e danificando veículos. Em nota, Louise Wateridge, alta funcionária da agência, disse que, embora devastador, o saque “não é surpreendente diante de um colapso sistêmico total”.

Ismail al-Thawabta, diretor do escritório de mídia do governo administrado pelo Hamas, descreveu os saques como “práticas isoladas de indivíduos que não refletem os valores e a ética do povo palestino” — e que as autoridades “acompanham os incidentes”.

Posição israelense
No passado, o governo israelense negou que Gaza enfrente uma crise de fome, e o Exército de Israel acusa o Hamas de desviar ajuda humanitária para distribuir entre seus combatentes ou vender e arrecadar fundos.

A ONU e outras agências negam que a ajuda tenha sido desviada e afirmam que utilizam mecanismos rígidos de monitoramento.

À rede britânica BBC, Sami Matar, líder da equipe American Near East Refugee Aid (Anera), disse que as organizações têm bancos de dados com nomes, números de identidade e endereços de “milhares de pessoas” atendidas.

— Isso evita duplicidade com o trabalho de outras ONGs e garante transparência — disse. — As pessoas dependem das nossas refeições; elas não têm renda para comprar o pouco que ainda resta nos mercados locais, e muitos alimentos não estão disponíveis. Por causa do bloqueio, não há carne ou vegetais frescos. Os próximos dias serão críticos. Devemos ter suprimentos para duas semanas, talvez menos. Antes, recebíamos mais de 100 caminhões por semana. Agora, não temos nada.

Centenas de milhares de palestinos contam com as poucas cozinhas em funcionamento para conseguir alimentos.

A que é operada pela Anera em Khan Younis, no sul do enclave, atende cerca de seis mil pessoas por dia.

Todos os trabalhadores da organização recebem alimentos para suas famílias, e o restante é rapidamente colocado em carroças e levado pelas ruas movimentadas até al-Mawasi, um campo de tendas para deslocados na costa, onde dezenas de monitores acompanham a distribuição. Cada marmita, explica Matar, serve até quatro pessoas.

— Graças a Deus, isso será suficiente — disse à BBC um idoso com muletas após receber duas marmitas para alimentar sua família de sete pessoas.

— Não me pergunte como está a situação. Nós só estamos vivos porque a morte ainda não nos levou. Juro que procurei um pedaço de pão desde cedo e não encontrei nenhum.

Colapso iminente
A ONU alertou que a situação atual é “provavelmente a pior até agora” devido ao bloqueio, à retomada da ofensiva militar e às ordens de retirada que, desde 18 de março, deslocaram cerca de 500 mil pessoas.

E a Cruz Vermelha declarou nesta sexta-feira que a “resposta humanitária em Gaza está à beira do colapso total”, destacando que, sem ação imediata, o enclave “mergulhará ainda mais no caos, e os esforços humanitários não conseguirão conter a situação”.

— As cozinhas comunitárias começaram a fechar, e mais pessoas estão passando fome — disse Olga Cherevko, porta-voz do Escritório da ONU para Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), citando relatos de crianças e outros grupos que morreram por desnutrição.

— O acesso à água também está se tornando impossível. Agora mesmo pessoas estão brigando por água. Um caminhão-pipa acabou de chegar, e as pessoas estão se matando por água. Há poucos dias, uma amiga viu pessoas pegando fogo por causa das explosões e não havia água para salvá-las.

O cenário tem elevado a pressão internacional sobre Israel. Na semana passada, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse ter dito ao primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, que era preciso ser “bom com Gaza” e permitir a entrada de alimentos e remédios no território.

Não houve resposta oficial, mas, no início desta semana, o Ministério das Relações Exteriores de Israel rejeitou as críticas conjuntas feitas pelo Reino Unido, França e Alemanha, que classificaram o bloqueio como “intolerável”. O órgão disse que mais de 25 mil caminhões entraram em Gaza durante o cessar-fogo.

Autoridades israelenses também indicaram que pretendem reformular o sistema de distribuição da ajuda humanitária, propondo assumir as entregas ou utilizar empresas privadas para isso.

Por enquanto, porém, os suprimentos se acumulam nas fronteiras de Gaza, aguardando liberação.

Segundo as Nações Unidas, mais de 3 mil caminhões com suprimentos essenciais estão presos na fronteira.

Ainda nesta sexta-feira, um navio de ajuda humanitária com destino a Gaza pegou fogo e emitiu um sinal de alerta após supostamente ter sido atingido por drones israelenses em águas internacionais, na costa de Malta, segundo a organização Freedom Flotilla Coalition (FFC).

A ONG disse que ativistas estavam a bordo da embarcação quando o suposto ataque ocorreu.

Entre eles, a ativista climática Greta Thunberg e o brasileiro Thiago Ávila. As Forças Armadas de Malta confirmaram que houve um incêndio que foi extinto, e disse ter enviado ajuda.

O Exército israelense lançou sua ofensiva militar em resposta a um ataque sem precedentes realizado pelo Hamas em 7 de outubro de 2023, no qual cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas e outras 251 foram feitas reféns.

Desde então, pelo menos 52,4 mil pessoas foram mortas em Gaza na guerra que se seguiu, segundo o Ministério da Saúde do território. Grande parte do estreito enclave foi reduzido a escombros, deixando centenas de milhares de pessoas abrigadas em tendas.