Coisas inevitáveis
Andar, uma privação que jamais gostaria de passar. Às vezes, fico imaginando quando minhas pernas não puderem mais me sustentar e o não ir, por mim mesmo, for a regra, e não mais a exceção. Mas nessas andanças por aqui e por acolá, volta e meia, sempre, coisas fantásticas acontecem.
Teria, em razão deste intervalo de poucos artigos, muito a contar, desde a beleza do Recife, a temas como a "sujeira espacial" de seus incontáveis fios, que inundam o céu da cidade como nuvens de algodão, com raios escuros a cruzar ruas, avenidas e prédios; quase sempre enfeiando uma cidade que se pretende inovadora e única. Mas não é o caso agora, deixemos para as próximas eleições.
O que gostaria de contar aqui é o que ouvi, outro dia, bem ali na Rua Direita, dois senhores conversando, num ainda café vendido no meio da rua por um ambulante, a bater a caixa de madeira e dizer: "café, café, esse é barato e bom". Coisas dos ambulantes do Recife, nunca mais visto por mim, mas que, naquele dia, me possibilitou, enquanto degustava o cafezinho no copo plástico, cujo preço era dito como "bom e barato", ouvir do vendedor que, um custava dois reais, e dois custavam cinco. Rindo da matemática do cidadão perguntei: "mas rapaz, por que dois cafés são mais caros que um (?)", no que foi respondido, de chofre por ele (...) "meu amigo, café demais faz mal!".
No que de imediato intervi: "e quanto custam três cafés (?)". Ele respondeu (...) "Nove! Mas quatro são dez reais!". Voltei a rir e disse (...) "quero quatro, pois um é pouco para mim". Ele feliz respondeu (...) "Está vendo? Vendi um caneco de café!". Como a estratégia foi vencedora, me contive rindo sozinho e passei a degustar o café enquanto ouvia a conversa alheia.
A conversa se dava entre dois senhores que mais pareciam ter saído da década de 20 do século passado. A pele de ambos, traçada pelos vincos do tempo e do sol, reluzente naquele dia de verão tardio, contrastava com a alvura de suas roupas, quase nos mesmos tons, em ambos, vestidos em branco e azul claro. A elegância de ambos me fez sentir envergonhado em meu traje de atleta: boné, camisa anti-UV e tênis especial. Quanta mediocridade estética a minha!
Mas o fato é que, ao olhar no tempo parado para degustar o café de antigamente, percebi que nos desacostumamos a conversar coisas triviais, e que, em razão da forma, são essas conversas a essência do que somos, seres comunicáveis e em comunicação, cujo atributo único é fazer-se entender, um ao outro. Assim prosseguiu a prosa entre os dois senhores, cujo tema foi a morte recente de Mario Vargas Llosa e as hipóteses, de cada um, em relação ao que teria se dado, entre ele e Gabriel Garcia Marques, no fato de Mário ter desferido um soco em Gabriel, quando romperam relações, motivação do ocorrido nunca revelada por ambos, segredo guardado até a morte, cuja história pulverizou as mentes de tantos, sem, contudo, ter havido uma hipótese ou resposta definitiva.
Vocês não imaginam a riqueza da conversa dos dois senhores! O mais alvo dizia, (...) "quando dois amigos chegam a esse ponto, é preciso coragem, muita coragem. Coragem de dizer o que interessa a um e ao outro, inclusive, o desgosto.". Ao que foi respondido pelo senhor mais escuro (...) "veja só, mas, um murro, e o silêncio após o murro, é muito mais belo e nobre, quem hoje em dia faria isso (?), vejo uns jovens que brigam por coisas banais, mas são covardes nas coisas sérias, no nosso tempo, só brigávamos por mulher, não se faz mais homem como antigamente, o que acho, sabendo dos dois, aquele murro foi em razão e uma mulher, não tenho dúvida".
Foi quando o primeiro retrucou (...) "mas, veja bem, e se foi por política, ou por dinheiro (?), o silêncio seria justificável (?) não deveriam ter divulgado (?) pois ambos já haviam se distanciado politicamente, Mario passou a denunciar as mentiras do socialismo na américa latina, sem parar de falar nos ditadores carismáticos, enquanto Gabo, continuava romantizando Fidel (...)". Daí, Esmeragdo, nome nunca mais ouvido por mim, mas chamado pelo outro senhor ao amigo, respondeu (...) "meu dileto, se optaram pelo silêncio, de um ao outro, e principalmente ao público, o fizeram em razão da nobreza de ambos. Como falta nobreza aos homens desses tempos atuais, incapazes de amar em silêncio, de guardar amores contidos, até mesmo não vividos, tempos de lacração, por isso parei de escrever. Sou do tempo de quando homens apenas se preocupavam com ' o alarido das palmas, o tilintar de moedas e o gemido de mulheres', coisas inevitáveis na vida".
Paguei os dez reais de café, olhei o whatsapp, conferi o grupo dos Hereges, principalmente os comentários do mais histérico e arrogante moral, e confirmei os tempos, atuais. Cheguei em casa, tomei banho, perfumei-me e "peguei uma camisa listrada e saí por aí".
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