Entre o Verbo e o Poder: O STF, o Deputado e a Constituição

 A recente decisão do ministro Flávio Dino, no âmbito da ADPF 854, ao intimar o deputado Sóstenes Cavalcante por declarações políticas dadas em entrevista, coloca em xeque uma cláusula central da democracia representativa: a imunidade parlamentar material, prevista no art. 53 da Constituição Federal.
O art. 53 estabelece:
"Os Deputados e Senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos."
A inviolabilidade protege manifestações ligadas ao mandato, impedindo responsabilizações civil e penal nesses casos. É uma imunidade material, voltada à função representativa, não à pessoa do parlamentar.
Desde Pontes de Miranda, ilustre egresso da nossa Faculdade de Direito do Recife, a doutrina reconhece que essa garantia é essencial à independência do Legislativo. A jurisprudência do STF é clara: na PET 7.174, firmou-se que a imunidade exige nexo com a função parlamentar; na PET 5.714, que ela cobre falas duras; no INQ 2.332, que se estende a entrevistas sobre temas legislativos. O conteúdo pode ser ácido, mas, se politicamente relevante e ligado ao mandato, é constitucionalmente protegido.
Ao intimar um deputado por entrevista de conteúdo político, o relator abriu um precedente com consequências graves para a estabilidade dos poderes da República. A decisão, que diminuiu o parlamento, invocou o art. 21, II, do RISTF e o art. 139, IV, do CPC, que conferem poderes instrutórios. Tais normas, porém, não autorizam o afastamento de garantias constitucionais, como a inviolabilidade da palavra de congressista.
O contexto era o cumprimento do acórdão que declarou inconstitucional o “orçamento secreto”. Mas, em vez de oficiar o Presidente da Câmara, responsável institucional, o relator se dirigiu a um parlamentar específico, emissor das palavras. A consequência é séria: normaliza-se a ideia de que ministros da Corte podem intimar parlamentares por falas políticas.
Diante da recusa do parlamentar, não houve renovação da ordem, sanção ou envio ao Plenário. O ministro, acertadamente, apenas determinou a ouvida de órgãos institucionais - inclusive a Presidência da Câmara. Ou seja, fez tardiamente o que cabia desde o início.
Contudo, não reconheceu o erro nem revogou a decisão. Ao contrário, reafirmou que não havia imunidade no caso. A prática foi abandonada, mas a tese foi mantida, abrindo espaço para que a exceção retorne como regra.
Essa ambiguidade fragiliza garantias constitucionais.
Este artigo não trata do conteúdo das declarações do deputado. Tampouco defende sua forma. O que se afirma é que o parlamentar, no exercício de seu mandato, tem o direito, conquistado nas urnas, de se manifestar - ainda que com exageros políticos - sem ser judicialmente intimado para se justificar por isso, conforme já reconheceu o próprio Supremo Tribunal Federal.
As imunidades parlamentares são essenciais à representação popular. Preservar a inviolabilidade da palavra parlamentar é proteger a própria democracia.

*Doutor em Direito e Ph.D. em Ciência Política. Ex-vereador do Recife.