Bebê Reborn: quais são os limites entre a brincadeira e fuga da realidade?
Feitas de silicone com objetivo de simular um bebê real, as bonecas reborn mobilizam redes sociais, dinheiro, discussões e uma comunidade fervorosa de 'reborneiras'
Um bebê não se sente bem. A mãe passa a perceber o desconforto, arruma uma bolsa com leite, fraldas, cartão de vacina e a documentação do filho para ir ao hospital.
Na unidade de saúde, o bebê passa por atendimento, é pesado, medicado e volta para casa. Tudo segue normal. A única diferença é que esse bebê não respira, não come, não está vivo: ele é o que se conhece por bebê reborn.
Foi esse cenário, retratado por uma "mamãe reborn" em um vídeo publicado nas redes sociais, que acendeu o debate acerca da prática do colecionismo de bonecas ultrarrealistas, chamadas de bebês reborn.
História
A técnica surgiu durante a Segunda Guerra Mundial, quando a dificuldade de encontrar brinquedos novos era grande.
Para driblar os problemas, mães e artesãs passaram a modificar bonecas antigas, com a intenção de deixá-las mais realistas e modernas.
Já o conceito reborn surgiu como arte consolidada apenas na década de 1990, quando artistas começaram a aderir o estilo de produção reborn, ou renascido em português, com técnicas detalhadas que têm a intenção de produzir um efeito hiper-realista em comparação aos bebês reais.
No Brasil, a moda reborn chegou por volta dos anos 2000, com fortes inspirações das coleções norte-americanas e europeias, onde a técnica já era mais desenvolvida e popular.
Mesmo com o foco majoritário no público infantil, as mulheres adultas entraram na comunidade "reborneira" a partir do crescimento do Youtube e Facebook, onde passaram a formar comunidades e publicar vídeos simulando rotinas reais com seus bebês de silicone, na intenção de divertir crianças na internet.
Polêmica
A brincadeira deu certo, hoje são milhares de perfis online sobre "rotina reborn" que viralizam e são acompanhados pela comunidade fervorosa de "reborneiras".
No TikTok, a influenciadora Yas Reborn - como se apresenta nas redes - acumula 142 mil seguidores. Foi o vídeo dela simulando uma visita ao hospital com um bebê reborn que deu início ao debate: qual o limite entre brincadeira fuga da realidade?
De acordo com o psiquiatra e professor de psiquiatria da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Vitor Hugo Stangler, o limite saudável da encenação passa pela compreensão de que tudo não passa de uma brincadeira fictícia.
"A situação fica preocupante quando se perde a noção entre o que é real e o que é fantasia. Isso pode acontecer quando a boneca passa a ser tratada como uma criança de verdade e começa a ocupar tempo na rotina da pessoa. A dona da boneca sente que precisa levá-la para locais em que uma criança real deveria ir para suprir necessidades de saúde, ou socialização, como um filho real", alerta o profissional.
Após a polêmica, a influenciadora Yas Reborn, de 17 anos, fez outro vídeo explicando a realidade de uma "colecionadora de bonecas realistas".
Na publicação, ela diz ter consciência de que os bebês não são de verdade e que o vídeo da ida ao hospital foi uma simulação, feita com personagens e uma narrativa roteirizada, com foco em divertir as seguidoras que acompanham a conta.
Na capa do perfil, ela também fixou a frase: "conteúdo infantil e totalmente fictício".
"Eu acho engraçado, porque o 'cara' que coleciona carrinhos de miniatura é normal, a mulher que coleciona Barbies é apenas uma colecionadora, mas eu, que coleciono bebês reborns, sou chamada de doente. Vocês precisam urgentemente expandir a mente", destacou na publicação.
Para Stangler, quando entendido do ponto de vista puramente colecionável, o hobby reborn não oferece nenhum problema e não deve ser imediatamente considerado como um distúrbio psíquico.
“Isso pode ser vivenciado de forma saudável, desde que haja consciência de que se trata de um hobby, e de que aquelas bonecas não são bebês reais. Com esse entendimento, a coleção pode ser encarada com naturalidade, assim como ocorre com outros tipos de colecionismo”, explica.
Economia Reborn
No mundo das "reborneiras", há também quem utilize da brincadeira como uma fonte de renda. Vera Emerenciano, trabalha desde 2014 como "cegonha reborn" - título dado às artesãs que confeccionam as bonecas - da Bebê Reborn Artes, que atua no Recife e na Região Metropolitana.
Segundo ela, a média de produção mensal fica entre 30 e 40 bebês. No catálogo, as bonecas variam entre R$ 300 e R$ 1.199.
"Não existe um preço fixo para as bebês. Tudo vai depender da técnica e dos materiais utilizados porque é um trabalho muito delicado. Bebês mais simples, por exemplo, são feitos em 8 dias. Já os mais complexos e ultra realistas, demoram cerca de 50 dias", conta.
O público alvo e as maiores compradoras das bonecas de Vera são as crianças com idades entre 5 e 13 anos. No entanto, ela acredita que a brincadeira não tem idade.
"Não existe idade, existe vontade de ter um bebê reborn. Eu já trabalhei com encomendas para pessoas idosas com Alzheimer, que relembraram dos filhos pequenos quando entraram em contato com a boneca", conta.
Limites
Segundo a psicóloga e professora da Universidade de Pernambuco, Janne Freitas, existem apontamentos dentro da literatura psicoterapêutica que indicam bonecas para auxílio e apoio no tratamento de algumas doenças e traumas.
"Bonecos são utilizados há muito tempo em diversas áreas da saúde, tanto para treinamentos quanto para tratamentos específicos, como no cuidado de pessoas com Alzheimer ou no enfrentamento do luto. Se o bebê reborn for empregado de forma simbólica e complementar nesse processo de superação, acredito que ele pode, sim, oferecer ajuda", exemplifica.
Ela chama atenção, no entanto, para o cuidado nos limites entre o simbólico e a fantasia, que não devem ser ultrapassados: "É importante que essas práticas estejam sendo feitas com ajuda profissional de um psicólogo".
Para Stangler, ainda que as bonecas possam ajudar em terapias de processamento de luto, o propósito delas é prioritariamente lúdico. Por isso, é preciso atenção e acompanhamento profissional.
"Não existe evidência estabelecida de que as bonecas funcionem como ferramenta de enfrentamento para todos os traumas. O que pode acontecer é uma inserção da boneca no processo terapêutico, para que ela ajude na comunicação e no processamento da situação. Porém, isso só deve acontecer dentro do ambiente terapêutico, em atividades isoladas e combinadas com o terapeuta. Quando aquilo começa a virar uma forma mais ampla na vida da pessoa, e ela começa a estar todo dia cuidando da boneca, fora dos momentos terapêuticos combinados, surge o alerta do ponto de vista psiquiátrico e psicológico", explica.
Coleção
Foi para enfrentar o luto da perda da irmã e do pai que Tânia Ferreira começou a colecionar bonecas reborn.
A comerciária formada professora, de 58 anos, conta que conseguiu as primeiras bebês por meio de rifas.
"O interesse veio quando eu procurava algo para me distrair da situação que eu estava vivendo. Meu pai estava muito doente e minha irmã com um diagnóstico de câncer terminal. Foi quando eu conheci a arte reborn e comecei a participar das rifas para ganhar as bonecas que, para mim, eram ainda muito caras", relata.
Hoje, a coleção de Tânia conta com 25 bonecas reborns que simulam bebês de todas as idades. "Tenho prematuro, recém-nascido e até as mais velhas, com um aninho".
Quanto às críticas, ela diz não se importar e destaca que cuida das bonecas pois elas também são parte de um investimento financeiro.
"Eu cuido das minhas bonecas porque além do valor sentimental, elas também têm um valor financeiro. Ninguém compra um carro, por exemplo, e deixa ele sem manutenção, é isso que faço com as minhas bonecas", explica. "Eu não vou levar a minha boneca em um hospital e ninguém leva. As pessoas não entendem que isso tudo é uma encenação para divertir, qual o problema?", questiona.
Sobre o apego emocional que sente na coleção, Tânia diz que vem de família e relembra as coleções que fazia quando criança.
"Eu sempre gostei de colecionar de tudo: selos, borboletas, cadernos de versos... Não sou louca porque sou colecionadora. Quando meu pai morreu, dez meses depois da minha irmã, me indicaram fazer terapia. E hoje, eu não preciso de remédio nem de terapia, porque a minha terapia é a minha coleção".
Para Stangler, mesmo que as bonecas possam oferecer um conforto emocional, ainda é preciso enfrentar os traumas com ajuda de um profissional.
"Muitas vezes, não conseguimos processar o que precisa ser enfrentado. Não conseguimos falar sobre o problema, nem reconhecê-lo, porque estamos presos a uma fantasia, algo que não existe. Mas ignorar o que causa sofrimento não faz com que ele desapareça. O sofrimento continua lá, e você continua sofrendo".