BR-319: rodovia que motivou embate de Marina com senadores já gerou atritos em outros governos
Defendida pelo governador do Amazonas, obra preocupa ambientalistas, que alertam sobre os riscos de crescimento do desmatamento no coração da Floresta Amazônica
O bate-boca na Comissão de Infraestrutura do Senado Federal que levou a ministra do Meio Ambiente Marina Silva a abandonar a sessão na terça-feira foi motivado por discussões relacionadas às obras da BR-319.
Com cerca de 850 quilômetros de extensão, a estrada conecta Manaus a Porto Velho, no “arco do desmatamento", e representa a única ligação terrestre da capital do Amazonas com o restante do país.
Defendida pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e criticada por Marina, a obra preocupa ambientalistas, que alertam sobre os riscos de crescimento do desmatamento no coração da Floresta Amazônica.
A pavimentação do meio da rodovia é apoiada pelo governo do estado e por parlamentares, mas preocupa pesquisadores da área ambiental, pelos elevados impactos que o asfaltamento pode causar em uma das regiões mais bem preservadas do bioma amazônico — que compreende 13 municípios, 42 Unidades de Conservação e 69 Terras Indígenas.
O governador Wilson Lima defende a obra como "forma de tirar o estado do isolamento em relação ao restante do Brasil".
Ambientalistas argumentam que o discurso de que a pavimentação da rodovia aumentaria a competitividade de produtos de Manaus por reduzir o custo do frete para o centro-sul do Brasil não se justifica pelo fato de a maior parte da produção local não ser perecível.
Nesta realidade, a redução do tempo de envio em alguns dias não faria uma diferença significativa e o transporte por meio de navios pelo rio Madeira se mostra mais eficiente em termos de consumo de energia e custo de mão de obra do que o embarque em milhares de caminhões, independentemente da rota rodoviária.
Construída na década de 1970, a via fez parte de uma iniciativa da ditadura militar de abertura de estradas como forma de ocupação e promoção da agricultura e pecuária na região amazônica. Inaugurada em 1976, a BR-319 tornou-se intransitável em 1988, o que levou a um abandono do Poder Público.
Os 405 quilômetros do trecho do meio e os 72 quilômetros de outro lote foram tomados pela floresta. Somente os trechos das duas pontas, em Porto Velho e Manaus, continuaram asfaltados.
A discussão acerca da possibilidade de um reasfaltamento da via ganhou força em 2007, quando o Ibama emitiu um Termo de Referência que solicitava a realização de Estudo de Impacto Ambienta (Eia) do trecho do meio da estrada.
Dois anos depois, após a devolução de dois estudos, uma terceira versão do documento foi elaborada, porém, não reuniu subsídios mínimos para verificar a viabilidade ambiental do empreendimento.
Discórdia no PT
No governo de Dilma Rousseff, a possibilidade de reasfaltamento voltou à pauta. Em 2015, o Ibama aceitou uma solicitação do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) e concedeu uma licença de manutenção para a via, condicionada ao processo de licenciamento ambiental. Havia interesse na facilitação da exploração de gás e petróleo na região amazônica.
A discussão já havia sido motivo de discórdia em governos petistas. Em 2010, o tema opôs os então ministros Carlos Minc (Meio Ambiente) e Alfredo Nascimento (Transportes). Minc era contrário ao projeto por entender que haveria danos ambientais, e defendia que fosse feita uma ferrovia no local, ao invés de estrada.
Pesquisadores alegam que, apesar de a licença concedida ter permitido apenas a manutenção da via, o retorno do tráfego pela estrada já trouxe como impacto o crescimento do desmatamento. Não houve a concessão de uma licença prévia no governo Dilma, que terminou no ano seguinte após o impeachment da petista.
Promessa de campanha
O debate acerca da via ganhou fôlego novamente durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, que defendeu o asfaltamento como promessa de campanha. Quando Manaus enfrentava uma crise de abastecimento de oxigênio, durante a pandemia da Covid-19, os cilindros foram transportados pelo BR-319.
No final da manhã do dia 20 de janeiro de 2021, quatro caminhões saíram de Porto Velho e, segundo o Ministério dos Transportes, iriam chegar a Manaus em aproximadamente 30 horas.
Outros três saíram no dia seguinte e tinham previsão de chegar no mesmo intervalo, apontou a superintendente do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), Arlene Lamego, na época. No entanto, seis dos caminhões que transportavam o oxigênio chegaram à capital do Amazonas apenas pouco antes das 12h do dia 24 do mesmo mês. O último veículo teve problemas e chegou a Manaus horas depois.
A crise do oxigênio de Manaus foi utilizada como argumento legal para derrubar uma liminar que suspendia as audiências públicas que não contaram com a presença dos povos impactados pela obra.
Na ocasião, o desembargador do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1) I'talo Fioravanti Sabo Mendes acolheu a alegação de que a suspensão das sessões provocaria lesão à ordem pública, à saúde e à econômica, além de apontar uma suposta necessidade da rodovia para transporte de insumos médicos para Manaus durante a pandemia.
Uma licença prévia, com validade de cinco anos, foi aprovada pelo Ibama em julho de 2022, último ano de Bolsonaro no Planalto. Ela consiste em uma etapa de discussão sobre a localização do projeto e sua viabilidade ambiental, não permitindo a efetiva execução das obras de pavimentação.
Embate com Marina
Em dezembro de 2023, Marina argumentou que a falta de conclusão da estrada se deve à dificuldade em provar sua viabilidade.
— Socialmente, a gente até entende. Agora, ambientalmente e economicamente, não se faz uma estrada de 400 km no meio de floresta virgem apenas para passear de carro, se não tiver ação associada a um projeto produtivo — disse Marina à CPI das ONGs, no Senado, na ocasião.
Em setembro do ano passado, o presidente Lula anunciou a pavimentação de uma extensão de 20 quilômetros ao custo de R$ 157,5 milhões, durante uma visita ao Amazonas em meio a seca severa e onda de queimadas. O petista disse que a gestão federal vai reconstruir a estrada “com a maior responsabilidade”, em parceria com os estados.
— É preciso parar com essa história de achar que a companheira Marina não quer construir a BR-319. Essa BR-319 foi construída nos anos 70. Ela foi abandonada por desleixo não sei de quem, ela ficou sem funcionar e hoje a rodovia tem uma parte para cá que funciona, uma parte para lá que funciona, e no meio são 400 quilômetros, que foram inutilizados — disse Lula durante discurso aos moradores de Manaquiri.
No mês seguinte, o desembargador Flávio Jardim, do TRF-1, derrubou uma decisão liminar, de junho, que havia suspendido a reconstrução e asfaltamento do trecho do meio da via.
Na decisão, o magistrado afirma que o trecho da BR-319 que liga as duas capitais “trata-se de uma verdadeira estrada de barro, que permanece em atividade e que demanda urgente revitalização, sob pena de manutenção do isolamento das populações que vivem nas regiões interligadas pela rodovia e dos gastos com medidas paliativas de não agravamento”.
Durante a sessão de terça-feira, o senador Omar Aziz acusou a ministra de “atrapalhar o desenvolvimento do país” por questões ambientais. Marina, por sua vez, afirmou que defende o desenvolvimento econômico com sustentabilidade e que explorações ambientais ilegais e suas consequências são “concretas”.
— A senhora atrapalha o desenvolvimento do país. Lhe digo isso com a maior naturalidade do mundo. A senhora está atrapalhando o desenvolvimento do nosso país. Tem mais de 5 mil obras paradas por causa dessa conversinha ‘governança’, nhe nhe nhe — disse Aziz.
Marina, por sua vez, defendeu a realização de estudos de impacto ambiental e afirmou que há picos de atividade ilegal na região quando o tema da BR-319 volta a ser discutido.
— Desde o processo em que vem se discutindo o anúncio da estrada, quando se fala da estrada a primeira coisa que tem é uma corrida de grilarem. Por isso o que se propõe desde lá é a avaliação ambiental estratégica. Qual é o problema de fazer? De ter governança? Estamos propondo desde sempre, por que não faz? Agora o ministro Renan [dos Transportes] está trabalhando para fazer, porque é isso que dá segurança aos empreendimentos (…) Não é questão ideológica. Desmatamento, exploração ilegal de madeira, garimpo ilegal é objetivo.
Marina também afirmou que o tema é complexo e por isso não teve solução ao longo dos 15 anos em que ficou fora do governo.
— Temos visões que podem ser diferentes, mas gostei de uma equação que Vossa Excelência coloca: que não é conversa fiada, mas coisa concreta (…) Uma coisa é concreta, concretíssima. O debate da 319 virou um debate em cima de "bode expiatório", que chama Marina Silva. É concreto que saí do governo em 2008. Até 2023, são 15 anos. Por que as pessoas tão dadas a coisas concretas não fizeram a BR?
Procurado pelo Globo, o Ministério do Meio Ambiente afirmou que aguarda o protocolo do requerimento da Licença de Instalação por parte do empreendedor para início da obra. Não há previsão de prazo para essa formalização.
A pasta também ressalta que, mesmo sem a autorização para o asfaltamento, “já se observa pressão crescente nas imediações da rodovia, como aumento de desmatamento, ocupações irregulares e outros impactos indiretos, o que reforça a importância de uma atuação integrada do Estado para conter danos e garantir a proteção da floresta e dos povos da região”.