Empreender na periferia: resistência e transformação
Nas periferias da Região Metropolitana do Recife, empreender é mais do que abrir o próprio negócio, mas um instrumento que muda a realidade de comunidades, gerando emprego, renda e dignidade
O impulso que move a transformação social não reside apenas em mobilizações coletivas. O poder de iniciativas individuais e orgânicas também pode mudar realidades. Em áreas periféricas, empreender é mais do que abrir um negócio: é um gesto de resistência, um grito silencioso de autonomia à margem das necessidades, muitas vezes, não atendidas pelas políticas públicas.
Em 2023, o Instituto Data Favela divulgou que o Brasil possui uma estimativa de 5,8 milhões de domicílios em favelas com 17,9 milhões de moradores. Do total de pessoas, 5,2 milhões já empreendem e outros 6 milhões têm o sonho de montar um negócio próprio. Além disso, sete a cada dez indivíduos que moram nesses locais têm a intenção de abrir um negócio próprio no bairro onde moram.
A pesquisa também mostra um mercado potencial e em expansão para quem deseja empreender em sua comunidade. Ainda segundo a amostragem, o número de favelas dobrou na última década (13.151 pelo país) e a população das favelas brasileiras aumentou e ultrapassou a barreira dos R$ 200 bilhões, R$ 12 bilhões a mais em relação ao último ano. Contudo, apenas 37% desses negócios são formalizados e têm um CNPJ.
Apesar de a informalidade ser um desafio para o país, a analista do Sebrae, Anna Gordiano pondera que, entre 2009 e 2025, houve um crescimento de 72% nas formalizações de empreendimentos em Pernambuco, com destaque para os Microempreendedores Individuais (MEIs). “Entre os meses analisados, a gente percebe uma concentração de 50% a 70% de formalizações feitas por pessoas negras, que estão, sim, nas localidades periféricas”, afirmou Anna.
A analista destacou que o modelo de MEIs é o mais representativo dentro das comunidades de baixa renda e é predominantemente formado por pessoas negras ou pardas. O Sebrae também mapeou, em 2024, que 4,63 milhões de empreendedores são oriundos do Bolsa Família e do Cadastro Único. E mais cerca de 20 milhões são MEIs informais.
A consultora em empreendedorismo feminino Aline Portela avalia que, apesar dos obstáculos estruturais e socioeconômicos, as periferias também estão repletas de oportunidades para empreendedores. O senso de pertencimento e proximidade nesses ambientes pode se tornara um fator positivo para impulsionar muitos negócios.
“Nas comunidades, existe o desafio do ambiente, mas, ao mesmo tempo, uma oportunidade. Nas comunidades, você tanto pode fornecer um determinado serviço ou produto, como também pode comprar esses mesmos produtos e serviços. Dentro da comunidade, existe um elo, um apoio mútuo no próprio ambiente”, destacou.
Inspiração
Onde, às vezes, as políticas públicas nem chegam, sobram ideias, coragem e criatividade. Entre o improviso e a urgência, surgem iniciativas que não apenas sobrevivem — mas florescem. Pequenos empreendedores tornam-se referências, movimentam economias locais, geram empregos, inspiram vizinhos e redesenham o cotidiano de comunidades. É o caso de Diego Soares, fundador junto a sua esposa Danielle Alves, do Espaço Cultural Cantinho do Axé, localizado na comunidade do Alto da Foice, no bairro do Vasco da Gama, Zona Norte do Recife.
A trajetória começou de forma simples e despretensiosa, vendendo sopa para complementar a renda.
“No começo, o objetivo era atender apenas o público local. Mas, aos poucos, as pessoas foram chegando, migrando de outras áreas para conhecer o espaço. Hoje, o bar ocupa uma área ampla, com muitos ambientes, e se tornou referência na região, tanto pela comida quanto pelo significado cultural”, lembrou Diego.
Nos finais de semana, o movimento é intenso. Cerca de 300 pessoas passam pelo local simultaneamente. Mais do que um bar, o Cantinho do Axé é hoje uma experiência completa: cultural, turística e gastronômica. São 26 funcionários diretos, número que pode chegar a 30 em dias de pico. E o mais simbólico: 90% do público vem de fora da comunidade.
“Quando empresas ou representantes do governo entram nas comunidades, é geralmente por uma pauta negativa, relacionada à violência ou à marginalidade. Aqui é diferente. O acesso acontece por uma pauta positiva”, destacou.
Mas construir essa realidade não foi fácil e continua sendo um desafio. Ele cita obstáculos como a falta de infraestrutura básica: saneamento, iluminação, abastecimento de água e contenção de encostas. Para Diego, o Cantinho do Axé não pode ser reduzido a um simples bar. “Já passaram jovens por aqui que hoje estão em grandes restaurantes. A gente forma, capacita. Meu critério é pegar gente crua e transformar”, afirmou com orgulho.
Vocação
Para Amanda Tavares, criadora da loja Manalu, empreender não foi apenas uma necessidade, mas uma vocação. Mulher, jovem e cheia de ideias, Amanda, nascida e criada em Jaboatão Velho, bairro central de Jaboatão dos Guararapes, sempre soube que queria ter o próprio negócio — e começou a construir esse caminho ainda na juventude.
Mesmo sem grandes recursos no início, ela transformou criatividade, afeto e estratégia em ferramentas para consolidar uma marca com identidade própria e forte conexão com as clientes. Hoje, nove anos depois, a microempresária tem duas lojas físicas, oito colaboradores diretos, centenas de clientes fiéis e comemora cada conquista das vidas que impacta. "Sempre quis ter uma empresa que gerasse renda para outras famílias. Meu propósito é esse: abençoar pessoas através do meu trabalho.", explicou.
Chave
Com uma rotina constante de viagens por todo Brasil para repor estoques e conhecer tendências, Amanda explicou que a chave para quem quer fazer qualquer negócio dar certo é o planejamento. Em junho, quando muitos negócios estão focados nas campanhas de São João e Dia dos Namorados, a empresária por trás da Manalu já está com os olhos voltados para outubro, mês do aniversário da loja — e até para a Black Friday de novembro.
“Eu já estou nos preparativos desde o começo do ano. Quando termina uma edição do aniversário da loja, eu já começo a pensar no próximo”, contou.
A empresária lembrou do sucesso da Black Friday do ano passado, quando clientes começaram a formar fila às 4h50 da manhã. “Esse ano, quero fazer diferente: planejar melhor e até oferecer café da manhã para quem chega cedo”, revelou. O cuidado com o cliente também aparece na forma como ela organiza os conteúdos da loja nas redes sociais. “Segunda é dia de postar roupa de trabalho. Ninguém quer ver vestido de festa começando a semana”, explicou. A estratégia é seguir o ritmo do público, adaptando as postagens conforme os dias da semana e as necessidades. Ela ainda ressalta que ter um vínculo afetivo com a clientela é parte essencial do negócio. “Aqui, não é só compra e venda. É afeto, é conexão”, disse.
Superação
Com criatividade, vontade e muita resiliência, empreendedores se orgulham de ter transformado também a realidade de pessoas próximas. “É gratificante ver que alguns parentes e amigos começaram projetos próprios depois do nosso. E é isso que a gente quer mostrar. Quem mora em comunidade pode, sim, empreender e criar algo que atraia turismo, que chame a atenção da população e que mude, aos poucos, a visão social que se tem da periferia”, completou o criador do Cantinho do Axé, Diego Soares.
Quando o poder público, as instituições e a sociedade civil reconhecem esse potencial, ajudam a construir um país mais igualitário, onde as oportunidades deixam de ser privilégio e passam a ser direito. “As barreiras enfrentadas pelos pequenos empreendedores são muitas, sobretudo diante da competitividade com empresas de maior porte e dos desafios da transformação digital. Por isso, é necessário um esforço coletivo para garantir que essas iniciativas sejam sustentáveis e realmente capazes de gerar impacto positivo nas comunidades”, finalizou a analista do Sebrae. Mais do que resistir, essas iniciativas provam que é possível prosperar e que, quando a favela empreende, o Brasil inteiro se movimenta.