Resenha e entrevista

Alaíde Costa, sobre reconhecimento tardio: "o tempo, às vezes, corrige injustiças"

Aos 89 anos, 60 anos de carreira e 27 álbuns, a artista segue produtiva, lançando discos e se aproximando da nova geração de artistas

A cantora Alaíde Costa é considerada a "mãe da bossa nova" - Daryan Dornelles/Divulgação

Apesar da sua grandiosa importância para a história da música popular brasileira, o sucesso chegou tardiamente para a cantora carioca Alaíde Costa. Aos 89 anos, a artista segue produtiva. Lançou em 2025 o álbum "Uma Estrela para Dalva", no qual interpreta canções do repertório de Dalva de Oliveira, "Rainha da Voz", uma das suas maiores referências na música nacional.

Foi com este mais recente álbum que Alaíde se aproximou de jovens músicos talentosos pernambucanos, a exemplo de Yuri Queiroga, que assina os arranjos ao lado de Roberto Menescal, e dos pianistas Amaro Freitas e Zé Manoel, com os quais participou de shows em tributo ao disco “Clube da Esquina”, em São Paulo e no Recife.

A artista foi a única mulher a participar da gravação do disco original, que viria a ser considerado um dos melhores álbuns da história da MPB, na faixa “Me Deixa em Paz”, ao lado dos mineiros Milton Nascimento, Lô Borges e Fernando Brant.“Pouca gente sabe, mas essa era uma música de Carnaval composta por Airton Amorim e Monsueto que eu gravei do meu jeito”, conta Alaíde.

Mãe da bossa
Iniciada ainda criança na música - aos 13 anos foi eleita a melhor cantora jovem no Sequência G3, da Rádio Tupi, apresentado por Paulo Gracindo - Alaíde Costa participou dos primórdios da bossa nova. Durante uma das gravações feitas nos estúdios da Odeon, a voz de Alaíde Costa chamou a atenção de João Gilberto.

Em 1959, Alaíde participou do 1º Festival de Samba Session, no Rio de Janeiro, ao lado de nomes como Sylvia Telles, Billy Blanco, Ronaldo Bôscoli, Carlos Lyra e Roberto Menescal, emplacando o sucesso “Chora Tua Tristeza”, de Oscar Castro-Neves e Luvercy Fiorini. Meses depois, a canção se tornaria a primeira a estourar fora dos limites do movimento da bossa nova. Hoje, a artista é considerada a “mãe da bossa nova” pela crítica.

Reconhecimento
Apesar dos seus mais de 60 anos de carreira e 27 álbuns lançados, o sucesso foi tardio para Alaíde. Enquanto a bossa nova exportava nomes como Tom Jobim e Vinicius de Moraes, ela passava despercebida dos holofotes. Não por acaso, uma mulher negra pioneira em meio a homens brancos e privilegiados.

“Eu nunca fiz música para agradar. Sempre segui meu caminho, escolhi o que cantar com muito critério, buscando sempre a poesia e a beleza. Talvez por isso o reconhecimento tenha demorado: porque eu não fiz concessões. E, infelizmente, também porque sou uma mulher negra, e o Brasil ainda tem muita dificuldade em reconhecer e valorizar plenamente artistas negras. Mas o tempo, às vezes, corrige injustiças. E estou viva para ver esse reconhecimento chegar - o que me dá alegria, embora nunca tenha sido o meu objetivo”, destaca.

Representatividade
“Eu precisei abrir muitos caminhos sozinha, com muita resistência. Hoje, vejo com alegria que há mais mulheres negras ocupando espaços de destaque na música como, por exemplo, a maravilhosa cantora Ilessi. Mas ainda temos um longo caminho pela frente, pois ainda há muitas que não têm o devido reconhecimento, caso da minha amiga, a também cantora Áurea Martins”, aponta Alaíde.

“Precisamos lutar contra o racismo estrutural, contra a invisibilidade e contra o apagamento das nossas histórias. As artes têm um papel fundamental nesse processo. E enquanto houver injustiça, haverá também resistência - e a arte é uma das formas mais bonitas de resistir”, destaca.

ENTREVISTA

Como a senhora, que teve o privilégio de participar da gravação do original “Clube da Esquina”, dividindo os vocais da canção “Me Deixa em Paz” com Milton Nascimento, se sente ao participar, 53 anos depois, de um tributo a esse clássico álbum da MPB, ao lado de dois jovens tão talentosos como Amaro Freitas e Zé Manoel?

Participar da gravação original do Clube da Esquina, ao lado do Milton, é uma lembrança muito viva e bonita para mim. Cantar Me Deixa em Paz naquele momento foi um presente. Pouca gente sabe, mas essa era uma música de Carnaval composta por Airton Amorim e Monsueto que eu gravei do meu jeito. Agora, 53 anos depois, estar nesse tributo ao lado de dois artistas tão talentosos como o Amaro Freitas e o Zé Manoel me emociona profundamente. Eles trazem um frescor, uma profundidade e uma entrega que me lembram o espírito daquela época, e ao mesmo tempo apontam para um futuro promissor da nossa música. É bonito ver a obra se renovar com tanto respeito e liberdade.

Em 2022, “Clube da Esquina” foi escolhido o Melhor Disco Brasileiro de Todos os Tempos em pesquisa realizada com especialistas pelo podcast Discoteca Básica para o livro “Os 500 Maiores Álbuns Brasileiros de Todos os Tempos”. E, de fato, o álbum atravessou gerações e até hoje faz sucesso, mesmo entre o público mais jovem. A que a senhora atribui essa longevidade tão grande deste disco?

O Clube da Esquina tem alma, e a alma não envelhece. É um disco feito com verdade, com coragem e com poesia. Ele ultrapassa o tempo porque fala de coisas essenciais: da amizade, da luta, da beleza, da dor e da esperança. E tudo isso com uma sonoridade inovadora que até hoje inspira músicos e ouvintes. A juventude reconhece isso — o que é bonito e verdadeiro atravessa o tempo.

Em seu mais recente trabalho, o álbum “Uma estrela para Dalva”, a senhora realizou, o que revelou ser um sonho em sua carreira: gravar um tributo a Dalva de Oliveira. Como essa artista a influenciou?

Dalva de Oliveira foi minha primeira grande referência de emoção. Quando a ouvi cantando pela primeira vez, ainda menina, senti que ali havia uma verdade que me tocava diretamente. Dalva me ensinou que cantar é viver a música com o corpo inteiro, com todas as emoções. Fazer o álbum Uma Estrela para Dalva foi um sonho que esperei décadas para realizar — e que veio num momento muito especial da minha vida graças ao meu empresário e produtor Thiago Marques Luiz que está na luta comigo desde 2004, ou seja, há mais de 20 anos. Ele bancou o disco do bolso dele e depois de pronto, o projeto foi abraçado pela gravadora Deck que vai lança-lo em vinil no segundo semestre. 

Neste álbum, Maria Bethânia divide com a senhora os vocais na canção “Ave Maria no Morro”, consagrada por Dalva e que, agora, ganhou uma releitura com sua assinatura. A gravação foi feita no dia de Nossa Senhora Aparecida e contou com o acompanhamento de João Camarero ao violão. Você pode compartilhar como foi esse emocionante encontro?

Gravar Ave Maria no Morro com a Bethânia foi um encontro de fé, de irmandade e de reverência. Foi no dia de Nossa Senhora Aparecida, e nós estávamos muito emocionadas. A Bethânia tem uma força espiritual muito parecida com a da Dalva e com a minha. João Camarero, com sua delicadeza no violão, completou esse círculo. Foi um momento sagrado, desses que a gente guarda pra sempre no coração.

Apesar da senhora ser justamente reconhecida pela crítica como “a mãe da bossa nova”, esse reconhecimento demorou a chegar. Qual o motivo, na sua opinião, de ter passado tanto tempo sem receber esse merecido crédito?

Eu nunca fiz música para agradar. Sempre segui meu caminho, escolhi o que cantar com muito critério, buscando sempre a poesia e a beleza. Talvez por isso o reconhecimento tenha demorado: porque eu não fiz concessões. E, infelizmente, também porque sou uma mulher negra, e o Brasil ainda tem muita dificuldade em reconhecer e valorizar plenamente artistas negras. Mas o tempo, às vezes, corrige injustiças. E estou viva para ver esse reconhecimento chegar — o que me dá alegria, embora nunca tenha sido o meu objetivo.

Qual sua percepção sobre esses jovens e promissores artistas pernambucanos da atualidade, Amaro Freitas e Zé Manoel? E, aproveitando o tema juventude, como a interação com artistas de gerações mais jovens, a exemplo da parceria com Emicida, que produziu um álbum seu, renova a sua visão sobre a música brasileira de hoje?

Amaro Freitas e Zé Manoel são dois artistas que me enchem de esperança, assim como o também pernambucano Ayrton Montarroyos, com o qual eu estou em turnê com o show Domingo, dedicado ao repertório do primeiro álbum de Caetano e Gal. São profundos, estudiosos, comprometidos com a arte e com o Brasil. Eles sabem escutar o passado e transformar em presente. Trabalhar com artistas jovens, como eles, é uma bênção.

A senhora é considerada uma pioneira na luta pela emancipação da mulher negra na profissão de cantora popular no Brasil. Quais avanços as mulheres negras já conquistaram e o que ainda falta superar na questão racial no Brasil, sobretudo no meio das artes?

Eu precisei abrir muitos caminhos sozinha, com muita resistência. Hoje vejo com alegria que há mais mulheres negras ocupando espaços de destaque na música, como por exemplo, a maravilhosa cantora Ilessi. Mas ainda temos um longo caminho pela frente, pois ainda há muitas que não tem o devido reconhecimento, caso da minha amiga, a também cantora Áurea Martins. Precisamos lutar contra o racismo estrutural, contra a invisibilidade e contra o apagamento das nossas histórias. As artes têm um papel fundamental nesse processo. E enquanto houver injustiça, haverá também resistência — e a arte é uma das formas mais bonitas de resistir.

Como atriz, a senhora recebeu, em 2020 o prêmio de Melhor Atriz Coadjuvante no Festival de Gramado por sua atuação no filme Todos os Mortos, dos diretores Caetano Gotardo e Marco Dutra. Na música, conseguiu construir uma carreira consagrada. O que a senhora diria para jovens meninas negras que sonham um dia trilhar uma carreira de sucesso nas artes como a sua?

Bom, eu não sou atriz. Fiquei muito feliz com o prêmio, mas sou apenas cantora e compositora. Eu diria para essas meninas que elas são capazes, que a beleza delas está na verdade do que sentem e expressam. Que estudem, que sonhem grande e que nunca deixem que alguém diga que elas não podem. O caminho é difícil, mas é possível. A arte transforma — transforma quem faz e quem recebe. E uma mulher negra com um microfone ou diante de uma câmera é um ato político, um gesto de afirmação. Que sigam em frente com coragem e ternura.