"Final Cut": Charles Burns transforma obsessões e angústias em HQ com clima de pesadelo
Obra foi recém-lançado no Brasil pela Darkside
O personagem da ilustração desta página não acordou certa manhã, de sonhos intranquilos, metamorfoseado num inseto monstruoso, embora o saco de dormir em que ele se encontra, como um casulo, possa sugerir isso.
Ainda que pareça tão transtornado quanto um Gregor Samsa, Brian está apenas tentando dormir, e o vento suave que sopra através das árvores do lugar em que ele está acampado, nos Estados Unidos, vai ajudá-lo a apagar.
Brian é o protagonista do mais novo quadrinho do americano Charles Burns, “Final Cut”, recém-lançado no Brasil pela Darkside. Na história de três capítulos, compilados em volume único aqui, ele é um homem que, adulto, continua obcecado por Laurie, uma mulher com quem teve uma relação breve e mal resolvida na juventude.
Tentando dar sentido ao que viveu (ou ao que imagina ter vivido), Brian revisita antigas gravações de Laurie, num processo que o faz mergulhar num turbilhão de lembranças fragmentadas, sonhos inquietantes e visões surreais.
Algo ao estilo do diretor David Lynch: estranho, mas irresistível. E belamente ilustrado por Burns. É sua HQ mais íntima, que explora desejo, culpa e perda com a peculiar e inconfundível estética sombria que o consagrou.
Em entrevista ao The Guardian no final do ano passado, o autor contou que, após seu trabalho anterior, a trilogia “X’ed Out”, viveu um bloqueio criativo que se estendeu por dez anos (!): “Havia uma voz na minha cabeça dizendo que eu nunca mais conseguiria fazer outra história longa”.
Bloqueios criativos são comuns entre escritores. Stephen King enfrentou o problema quando decidiu largar o álcool e a cocaína, como revelou em seu livro de não ficção “Sobre a escrita”. Na obra, ele conta que não se lembrava de como havia escrito algumas de suas histórias, como “Cujo”. Com Virginia Woolf, o blecaute surgiu após uma crise de depressão. Já Franz Kafka travou depois do diagnóstico de tuberculose. Mas foi depois desses períodos turbulentos que eles publicaram “Louca obsessão”, “Mrs. Dalloway” e “O castelo”, respectivamente.
Burns disse ainda ao jornal britânico que chegou ao ponto de achar que não conseguiria mais produzir quadrinhos, pois sempre que começava um novo projeto o resultado lhe parecia uma porcaria. Foi só depois de lembrar de um desenho feito há 50 anos que tudo mudou: “Eu estava na cozinha. Era 1974 e estava muito chapado, numa festa, desenhando meu autorretrato numa torradeira”. A partir daí, Burns produziu uma pequena HQ de sete páginas sobre a experiência, imaginando uma garota linda entrando em cena e percebendo, segundo o quadrinista, que ser humano magnífico ele era (!). Tudo bem semelhante ao início de “Final Cut”, daí a razão de ser o trabalho mais pessoal do autor.
Burns nasceu em 1955, em Washington, D.C., e cresceu em Seattle durante os anos 1970. Sua obra começou a aparecer e a se destacar na revista “Raw”, de Art Spiegelman (autor da premiada HQ “Maus”), em meados dos anos 1980, seguida por uma variedade de trabalhos — de colaborações para revistas de quadrinhos, entre elas “Métal Hurlant”, “Frigidaire” e “El Víbora”, a ilustrações para publicações como “Esquire”, “New Yorker” e “Time”, além da famosa capa do disco “Brick by Brick”, de Iggy Pop. Mas foi “Black Hole” (Darkside), originalmente publicado de forma seriada entre 1993 e 2004, que o consagrou no gênero dos comics americanos, rendendo-lhe os prêmios Eisner, Harvey, Ignatz e, na França, o prestigiado Prêmio de Melhor Álbum Estrangeiro no Festival de Angoulême.
Diferentemente de “Black Hole”, produzido em um preto e branco de forte autocontraste, “Final Cut” é bem colorido, com cores chapadas, o que caracteriza o gibi como um bom exemplo da linha clara dos quadrinhos fora do mercado franco-belga, que cunhou o termo, geralmente associado a álbuns como os de Tintim ou da dupla Blake & Mortimer. Além das cores, o estilo aparece bem representado no traço de Burns, de contornos uniformes e composição visual clara. Já seu roteiro, carregado de angústia existencial, constante desconforto e clima onírico, se aproxima da temática dos filmes de Lynch ou Cronenberg. Há, na obra do autor, uma espécie de compreensão do habitual incômodo dos jovens perante o amadurecimento, a vida adulta. Foi assim em “Black Hole”, uma espécie de metáfora visual horripilante da Aids e, em “Final Cut”, ele parece ter ido além. Em sua crítica publicada no Washington Post, Mark Dery diz que “é o livro que Charles Burns nasceu para escrever”. Segundo ele, o quadrinista “desenha suas histórias em quadrinhos inquietantes e sombriamente surreais com um traço tão preciso, tão afiado, que parece ter sido cortado com um estilete”.
“Final Cut” ainda homenageia o cinema não só no título, referência ao corte final de um longa-metragem, mas também em sua narrativa fragmentada e na trama básica do quadrinho, pois o protagonista é um grande fã do clássico de horror “Vampiros de almas”, do cineasta Don Siegel. A partir de certo ponto do livro, Brian decide fazer a sua própria versão do filme de 1956. Na obra cinematográfica, há uma invasão silenciosa de extraterrestres que chegam à Terra na forma de esporos e passam a criar cópias perfeitas dos humanos enquanto eles dormem, substituindo-os por versões perfeitamente iguais, mas emocionalmente frias. E, assim como no filme, na HQ os amigos de Brian destituem-se de suas emoções.