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Reviravolta abrupta: julgamento de padre por abuso infantil é cancelado na Argentina

Decisão foi anunciada neste domingo (6), em linha com a sentença do Tribunal que já absolveu outro padre"

O padre Anatoly Raúl Sidders, capelão da escola San Vicente de Paul, em La Plata, na Argentina - Reprodução/La Nacion

Trata-se de uma mudança abrupta de ritmo que colocou as vítimas de abuso sexual na Argentina em alerta, pois agora precisam recorrer a tribunais internacionais em busca de justiça. Neste domingo (6), foi anunciado — em consonância com a recente decisão do Tribunal sobre a prescrição do crime que absolveu o renomado padre Justo José Ilarraz — que o processo contra Anatoly Raúl Sidders, padre de La Plata acusado de forçar uma menina de 11 anos a tocar seus genitais através da batina repetidamente ao longo de anos, foi arquivado.

Capelão histórico do colégio San Vicente de Paul, na capital da província de Buenos Aires, Sidders foi denunciado pela vítima em 2020, quando ela tinha 32 anos. Passados os 12 anos previstos pelo Código Penal e pela regulamentação argentina para condenar o acusado, em linha com o decidido esta semana pela mais alta corte do país, os advogados do padre recorreram aos juízes que deveriam iniciar o debate na próxima quinta-feira (10), e que acabaram deferindo o pedido, com uma decisão que desativa todo o processo e isenta o religioso de La Plata de culpa e acusações.

A mulher que apresentou a denúncia morreu no ano passado, então sua família deu o impulso final ao processo judicial contra o padre, que deveria ser julgado.

"Ela morreu antes de ver esse pedófilo ser levado a julgamento. Nós apenas exigimos justiça" exclamou a comitiva da denunciante há alguns dias, aguardando a decisão do tribunal.

Agora, tudo mudou. A surpresa e o choque com a decisão estão começando a inundar as vítimas desse tipo de crime em todo o país com perguntas.

Na sexta-feira (4), o 5º Juizado Criminal de La Plata decidiu que o processo criminal havia sido "extinto por prescrição" e que "extinguiu o réu Anatoly Raúl Sidders" e concedeu sua "liberdade imediata" (ele estava em prisão domiciliar desde 2020). A juíza Carmen Rosa Palacios Arias notificou todas as partes da decisão, assinando-a. O julgamento com júri, que deveria ser proferido no dia 12 de julho, foi, portanto, suspenso.

“Não me escapa que as vítimas desses crimes hediondos denunciam os casos quando podem, e nem sempre quando devem, mas há disposições constitucionais que não permitem que esses casos sejam excluídos da prescrição. Caso contrário, nenhum crime de abuso sexual estaria sujeito a qualquer regra de prescrição, desde que a vítima não apresente queixa”, afirma a juíza na fundamentação da decisão, vinculada à decisão da Suprema Corte no caso Ilarraz.

Sidders, que até sábado (5) estava em prisão domiciliar, foi acusado de “abuso sexual gravemente ultrajante, devido à sua duração e às circunstâncias de sua prática, duplamente qualificado por causar dano grave à saúde mental da vítima e por ter sido cometido por um ministro de um culto religioso, em real concordância com a corrupção de menores, qualificado pelo fato de a vítima ter menos de 13 anos de idade”.

Apelo internacional
Nesta etapa decisiva, foi previsto um apoio especial de alcance internacional, levando em conta os casos de grande repercussão na Igreja Católica nos últimos anos, como a sentença histórica contra os sacerdotes e funcionários do Instituto Antonio Próvolo de Mendoza, condenados por abusar de crianças surdas, que teve repercussão mundial.

Vale lembrar que também houve vítimas de padres na sede do Próvolo, em La Plata. Por isso, este julgamento ganhou ainda mais relevância, além da enorme repercussão que vinha tendo nas redes sociais, com a confirmação da presença de dois executivos da organização internacional Ending Clergy Abuse (ECA). A organização vem exigindo "tolerância zero" do Vaticano para os responsáveis por esses crimes.

Neste caso, o ex-eurodeputado Matthias Katsch, autoridade da instituição na Europa, deveria chegar na Argentina ainda no domingo, vindo da Alemanha. Ele estava previsto para comparecer, assim como o advogado Sergio Salinas, chefe da organização nas Américas e representante das vítimas do Próvolo em Mendoza. No entanto, o descontentamento e o alarme cresceram com os recentes desdobramentos do caso do padre Justo José Ilarraz, condenado a 25 anos de prisão por abusar sexualmente de adolescentes sob seus cuidados em um seminário em Entre Ríos. A Suprema Corte decidiu absolvê-lo devido à prescrição do processo penal.

"Estamos muito preocupados com decisões como a da Corte Argentina, que geram responsabilidade internacional para o país perante tribunais internacionais no futuro imediato" afirmou a ECA.

Enquanto isso, Salinas, com a mesma preocupação, expressou consternação com o ocorrido em entrevista ao jornal "La Nación":

"Isso cria um efeito cascata, onde muitos tribunais, a começar pelas defesas, se aproveitarão dessa prescrição, violando tratados internacionais de direitos humanos. É um retrocesso que viola o que se conhece como cláusula progressiva em direitos humanos. O que gera são mais instâncias em tribunais internacionais, como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e responsabilidade futura do Estado. Usar o direito interno para evitar a justiça para crianças e adolescentes é uma violação dos direitos humanos, cabendo à Argentina a responsabilidade internacional."

Em meio a essa situação complexa e dramática, o Ministro da Justiça da Argentina, Mariano Cúneo Libarona, afirmou que serão realizadas reformas no Código Penal para acabar com os prazos para denúncias de abuso sexual. “Crimes sexuais não devem ter prazo de prescrição. Para evitar esse tipo de injustiça, no novo Código Penal que enviaremos ao Congresso, proporemos que os crimes sexuais sejam considerados imprescritíveis”, escreveu em seu perfil oficial no X.

Para especialistas na área e defensores dos direitos das vítimas, este é um passo significativo para a Argentina. No entanto, eles esclarecem que a regulamentação, como qualquer lei, não será retroativa e, portanto, pedem ações perante tribunais internacionais para garantir que esses tipos de crimes, mesmo que tenham ocorrido há décadas, tenham o respaldo jurídico e global necessário para anular as decisões dos tribunais nacionais.

O caso Sidders
Segundo a vítima, Daniela, os abusos sofridos por Sidders começaram quando ela tinha 11 anos, na quarta série, e ocorriam durante o recreio escolar. Foi um calvário que durou quatro anos, entre 2004 e 2008. O padre a convidou para se aproximar para "aquecê-lo": ele a obrigava a colocar as mãos "frias" nos bolsos da batina dele, mas então ela começava a sentir sua ereção. A mulher disse que, durante as confissões, ele a questionava sobre masturbação e lhe dava "recomendações" sobre como ter relações sexuais.

O caso começou a tomar forma em 2020, quando a mulher já tinha 32 anos e teve a coragem de denunciar o padre após receber extenso tratamento psicológico. Daniela faleceu em 2024 após uma longa enfermidade, de modo que sua mãe e seu marido continuaram como autores no caso, juntamente com as advogadas Josefina Rodrigo e Pía Garralda.

Quando a denúncia foi apresentada, o caso ganhou tanta repercussão que o então Arcebispo de La Plata, Víctor Manuel Fernández, criticado por "silenciar" os acontecimentos, acabou demitindo Sadders de seu cargo na escola. O padre foi transferido para Misiones e teve o contato com menores proibido.

No final de 2020, Sidder foi preso e, em poucos meses, obteve prisão domiciliar, após argumentos da defesa devido a problemas de saúde. Ele também solicitou a absolvição dos crimes. O padre negou repetidamente ter conhecido ou tido contato com a mulher que o denunciou, embora existam depoimentos de colegas de Daniela que relataram experiências semelhantes, além dos relatos psicológicos contundentes da vítima. Restava apenas aguardar o início do julgamento de Sidders e o veredito do júri. Nada disso acontecerá agora.