DIREITOS HUMANOS

Caso Caster Semenya volta à Justiça e reacende debate sobre gênero no esporte

Tribunal Europeu de Direitos Humanos analisa se regras que exigem redução de testosterona violam os direitos da atleta sul-africana e de outras mulheres intersexo

Caster Semenya, da África do Sul - Saeed Khan / AFP

O Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH) deve decidir nesta quinta-feira (10) se a bicampeã olímpica sul-africana Caster Semenya pode ser obrigada a reduzir seus níveis naturais de testosterona para competir, uma decisão considerada crucial para o futuro das atletas com hiperandrogenismo.

Apesar de estar afastada das competições desde 2018, a questão sobre o gênero no esporte continua gerando polêmicas, como ocorreu recentemente durante os Jogos Olímpicos de Paris 2024, com o caso da boxeadora argelina e campeã olímpica Imane Khelif.

Segundo o especialista em direito esportivo Antoine Duval, do Instituto Asser, em Haia, a decisão do TEDH “poderá influenciar futuras contestações às regras de elegibilidade em competições femininas”.

Semenya, campeã olímpica dos 800 metros em 2012 e 2016, e tricampeã mundial (2009, 2011 e 2017), possui produção natural elevada de andrógenos, hormônios associados ao sexo masculino, que podem aumentar a massa muscular e melhorar o desempenho.

“A senhora Semenya é uma mulher. Foi registrada como do sexo feminino no nascimento, legal e biologicamente”, afirmou sua advogada, Schona Jolly, durante audiência em maio na sede do TEDH, em Estrasburgo, França.

Desde 2018, a World Athletics, federação internacional de atletismo, exige que atletas com hiperandrogenismo reduzam seus níveis naturais de testosterona por meio de tratamento hormonal para poderem competir entre mulheres.

Semenya contesta a regra. Segundo sua defesa, a sul-africana foi forçada a escolher entre “preservar sua integridade e dignidade, ficando excluída da competição”, ou “submeter-se a um tratamento nocivo, inútil e supostamente corretivo”.

“A decisão da Grande Câmara do TEDH será muito importante”, afirmou a própria atleta em maio. Ela diz esperar que o caso “abra caminho para que outras jovens mulheres não sejam desumanizadas nem discriminadas”.

Discriminação ou equidade esportiva?
Desde que ganhou visibilidade nos Mundiais de Atletismo de 2009, em Berlim, onde conquistou o ouro, Semenya passou a ser alvo de especulações sobre sua identidade de gênero devido à sua aparência física e voz grave.

Após a vitória em Berlim, ficou 11 meses sem competir e foi submetida a exames de "feminilidade", cujos resultados seguem sob sigilo. Em julho de 2010, foi autorizada a retornar às pistas, mas em 2018, as novas regras da World Athletics mudaram o cenário.

O Tribunal Arbitral do Esporte (TAS), com sede em Lausanne, aprovou a regulamentação em 2019, e a Justiça suíça confirmou a decisão, alegando que altos níveis de testosterona conferem às atletas "uma vantagem insuperável".

Semenya recorreu de ambas as decisões, mas teve os recursos rejeitados. No entanto, obteve uma primeira vitória no TEDH em 11 de julho de 2023, quando a corte considerou que a Justiça suíça violou seus direitos, caracterizando discriminação e violação de sua vida privada.

O governo da Suíça, com apoio da World Athletics, recorreu da decisão, levando o caso à Grande Câmara, instância máxima do tribunal europeu.

Questão vai além de Semenya
A decisão de 2023 não anulou as regras da World Athletics nem garantiu automaticamente o retorno de Semenya às competições nos 800 metros sem necessidade de tratamento hormonal.

Na verdade, a federação endureceu ainda mais as regras naquele mesmo ano e, em março passado, aprovou um novo método: a coleta de uma amostra bucal para determinar se uma atleta é biologicamente mulher. A data de implementação ainda não foi definida, mas pode coincidir com o Mundial de Atletismo de Tóquio, previsto para 13 a 21 de setembro deste ano.

Além do caso de Semenya, a discussão sobre gênero e elegibilidade abala o mundo esportivo. O Comitê Olímpico Internacional cogita retomar verificações de gênero, sob pressão de diversas modalidades.

World Athletics, World Boxing e World Aquatics já anunciaram que adotarão testes cromossômicos, buscando restringir a participação em competições femininas a atletas com cromossomos XX — excluindo mulheres transgênero e pessoas intersexo com cromossomos XY, classificadas como portadoras de diferenças no desenvolvimento sexual (DDS).