opinião

Marco Civil no STF, notice-and-take-down: hora de proteger também a propriedade intelectual

No fim do último mês, o Supremo Tribunal Federal encerrou uma peregrinação processual que começara anos atrás. Ao concluir os julgamentos dos Recursos Extraordinários 1.037.396 e 1.057.258, o plenário firmou maioria para dizer, em voz alta, o que boa parte dos operadores do direito já intuía: quando um conteúdo é manifestamente ilícito ou criminoso, as plataformas digitais não podem se esconder atrás do artigo 19 do Marco Civil da Internet. A decisão dá às vítimas - e à sociedade - a possibilidade de exigir dos provedores uma postura mais célere, dispensando a burocracia de aguardar uma ordem judicial.

O ministro Dias Toffoli, relator do Tema 987, quis antes de tudo relembrar de onde viemos. Citou o caso Orkut de 2010 (REsp 1.117.633 / RO) para mostrar que, até 2014, o Brasil convivia razoavelmente bem com um sistema informal de notice-and-take-down: recebida a notificação, cabia ao provedor agir; se ficasse parado, respondia pelos danos. Foi o Marco Civil, ao amarrar a responsabilidade à existência de ordem judicial específica, que empurrou esse modelo para o limbo - e, de quebra, premiou a inércia das big techs.

A nova decisão não rasga o artigo 19. Apenas lembra que ele nunca proibiu a remoção voluntária; só tratava do momento em que nasce o dever de indenizar. Agora, o Supremo esclarece: se o ilícito é evidente - terrorismo, racismo, pornografia infantil… ou falsificação de marca, contrafação de patente, pirataria -, a plataforma deve tirar o conteúdo do ar tão logo seja notificada. Se não o fizer, assume o risco.

Essa semana, no Fórum de Lisboa, pude ouvir pessoalmente o presidente do STF, ministro Luís Roberto Barroso, afirmar que todos os crimes, com exceção daqueles contra a honra, podem ser retirados das plataformas por notificação extrajudicial. Essa fala reforçou meu entendimento de que os crimes contra a propriedade intelectual, por serem tipificados na Lei 9.279/96, estão claramente contemplados na nova interpretação do artigo 19 do Marco Civil. A possibilidade de remoção ágil, sem ordem judicial, passa a valer não apenas para conteúdos de ódio ou desinformação, mas também para práticas como a venda de produtos falsificados ou uso indevido de marcas registradas.

É justamente aí que entra a propriedade intelectual. A Lei de Propriedade Industrial transforma falsificação de marca, venda de produto pirata e certos atos de concorrência desleal em crimes. Portanto, enquadram-se com folga na categoria dos “conteúdos manifestamente ilícitos” que o STF quer fora do ar sem perda de tempo. A lógica, aliás, não é invenção brasileira: desde 1998, o DMCA norte-americano condiciona a imunidade do provedor à remoção rápida após o takedown notice; na União Europeia, a Diretiva de Comércio Eletrônico (e agora a Digital Services Act) segue caminho parecido.

As próprias plataformas já conhecem o roteiro. Antes de 2014, bastava a notificação de um titular para que anúncios de camisetas falsificadas ou perfis com logotipos indevidos desaparecessem em poucas horas. Após o Marco Civil, o setor jurídico de muitas empresas passou a exigir ordem judicial para quase tudo. Resultado: violações flagrantes de PI ficaram dias, semanas ou meses on-line, dilapidando marcas, desviando clientela, financiando redes de pirataria.

Com o precedente de 2025 e a clareza trazida pela fala do presidente do STF, essa prática tende – ou deveria tender – a mudar. Quem tem registro de marca ou patente em mãos, fotos do produto falso e os links do anúncio consegue reunir, numa tarde, um dossiê suficiente para demonstrar a ilicitude sem margem de dúvida. A bola, então, volta ao campo do provedor: remover rápido ou responder civilmente, com direito de regresso contra o usuário infrator.
É verdade que nem toda disputa de propriedade intelectual se resolve num estalar de dedos. Há casos complexos de similaridade de marca ou de trade dress que exigem perícia. Mas isso nunca justificou, e agora justifica menos ainda, a permanência de flagrantes de falsificação à vista de todos. Se o Supremo enxergou urgência para discurso de ódio ou fake news eleitoral, por que seria diferente com crimes que corroem a inovação, a economia formal e a confiança do consumidor?

O Brasil, enfim, volta a alinhar-se aos modelos internacionais sem abrir mão de garantias. O artigo 19 permanece como regra de responsabilização; o que cai por terra é a ideia de que ele blinda a inércia. Ao restaurar o dever de cuidado que existia antes de 2014, o STF envia mensagem clara: plataformas que lucram com a circulação de conteúdo produzido por terceiros precisam assumir, também, a conta de proteger o espaço digital contra ilícitos óbvios – inclusive aqueles que ferem a propriedade intelectual.
 

* Advogado, especializado em Propriedade Intelectual e sócio gestor do Escobar Advocacia.
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