Entrevista

Filho de Jango admite conexão da morte do pai à de Juscelino Kubitschek e Lacerda

Filósofo João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart (Jango), foi entrevistado pelo jornalista Magno Martins, no podcast "Direto de Brasília"

Entrevista com João Vicente Goulart - Foto: Reprodução

O filósofo João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart (Jango) e presidente do instituto que leva o nome do pai, luta há cinco décadas para descobrir a verdade sobre a morte de seu pai. João Vicente afirmou que “sem dúvida existe uma conexão muito grande, com algumas incógnitas” entre as mortes de Juscelino Kubitschek, Jango e Carlos Lacerda, todas em circunstâncias “duvidosas e não esclarecidas até hoje”. Ele questiona a dificuldade de validar documentos da ditadura e dispara contra apoiadores da volta do regime militar no Brasil. “Aqueles que não conhecem o que aconteceu tendem a repetir a história”, afirmou, em entrevista ao podcast Direto de Brasília, apresentado por Magno Martins. 

A morte do seu pai completará 50 anos em 2016. Que mistérios e dúvidas ainda existem para esclarecer tudo?
Conseguimos, através da Comissão da Verdade, fazer a exumação em 2013, que deixou incógnitas. A dúvida nacional, que é uma obrigação do estado brasileiro, é saber o que aconteceu com um de seus ex-presidentes da República, que em 1964 sofreu um golpe de estado e se implantou ditadura. Jango foi o único ex-presidente do Brasil que morreu no exílio e a história ainda não consegue debelar essa dúvida. É preocupante para nossos historiadores, para pesquisas políticas, para a historiografia que não se tenha resolvido essa dúvida.

A dúvida é se foi envenenamento ou assassinato?
O que se supõe, e não é só suposição, é que ele realmente foi vítima de troca de remédios pela Operação Condor, que era uma cooperativa do terror, uma união dos serviços secretos das ditaduras latino-americanas. Existiram inúmeros casos de envenenamento. No caso de Jango, temos declarações de agentes uruguaios que participaram da troca de medicação. A única coisa que nao temos, apesar de inúmeros indícios, é uma declaração em cartório do presidente Geisel mandando matar em cartório. Isso não teremos jamais.

As mortes de Jango, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda foram em um curto intervalo de tempo. É possível criar alguma conexão entre elas e a Operação Condor?
Sem dúvida existe uma conexão muito grande, com algumas incógnitas. Alguns chamam teoria da conspiração. JK morreu em setembro de 1976, Jango em dezembro, e Lacerda em março de 1977. Todos em situações duvidosas e não esclarecidas até hoje. E uma das coisas que diferem muito as investigações de desaparecimentos do Brasil com Argentina, Chile e Uruguai é aqui elas são realizadas pelo Ministério Público. E o procurador muda toda hora. No Chile, o mesmo juiz foi até os Estados Unidos, porque só ele conduz a investigação. JK morreu numa circunstância (acidente de carro), e anos depois fizeram exumação do motorista Geraldo e tinha um furo na cabeça dele. Lacerda foi tomar uma injeção num posto de saúde por uma gripe forte e quatro horas depois estava morto.

A chamada Frente Ampla teria a ver com isso?
Lacerda derrubou Getúlio Vargas e Jango, e era o único que estava com direitos vigentes. JK e Jango estavam cassados, e em nome do Brasil fizeram a Frente Ampla para que Lacerda se juntasse pela volta da democracia. Por isso é muito estranho essas três mortes sucessivamente. É importante para a nação brasileira que caso JK seja reaberto. E o caso do governador Lacerda tem que ser explicado de alguma maneira, mas não sei se há essa disposição por parte das famílias.

O mais difícil é encontrar os documentos ou validar?
O Brasil foi um dos países que mais operacionalizou a Operação Condor, mas sem divulgar nomes de agentes e militares que lá estavam. Até hoje tivemos a liberação e desclassificação de vários documentos dos serviços secretos. A presidente Dilma Rousseff, enquanto chefe da Casa Civil, nos deu diversos documentos sobre a repreensão no Brasil. Não foram liberados os nomes dos agentes que participaram, sequestraram, mataram e eliminaram vários brasileiros que ainda estão desaparecidos e não sabemos onde foram parar. Temos esta posição de reivindicar. Fomos vítimas da ditadura, mas a maior vítima é o estado brasileiro, a cidadania, a soberania, a defesa do cidadão brasileiro que passou por todas essas barbaridades e até hoje não tem essa resposta.

No ano que seu pai morreu, Jimmy Carter foi eleito presidente dos Estados Unidos, com a bandeira dos direitos humanos. Foi o princípio do fim das ditaduras americanas?
Em 1976, Carter foi eleito e veio a questão dos direitos humanos, através do Banco Mundial, exigindo a volta das democracias. Os militares tiveram que fazer uma distensão política, porque eles pensavam que aqueles que ontem perseguiam hoje seriam perseguidos pelos direitos humanos. Ficariam na mira da justiça e teriam complicações. E quais grandes líderes podem voltar e retomar o processo democrático? Aí veio a eliminação de Jango, JK e Lacerda. Para fazer uma abertura lenta, gradual e devagar, para que na medida em que abrissem não tivessem mais os líderes importantes. Depois veio a anistia em 1979, completamente dirigida, contra alguns princípios internacionais dos direitos humanos. Porque tortura, assassinato e sequestro não têm prescrição, e mesmo assim foram anistiados. E houve a abertura política, a Arena se manteve no PDS, e a esquerda se dividiu.

O senhor conviveu com o ex-governador Leonel Brizola. Ele esperava uma reação mais enérgica do seu pai contra o regime?
Sim, Brizola sempre teve uma ação política bem mais guerreira, digamos assim, do que o Jango, que era um político bem mais hábil. Em 1964, Jango foi para Porto Alegre encontrar Brizola, chamou o comandante do 3º Exército, que disse que podiam resistir, mas já existiam unidades rebeldes a favor do golpe. Então o ex-ministro Santiago Dantas avisou que havia uma frota americana se dirigindo ao Brasil. O pai tinha uma preocupação com o país. Se houvesse resistência, os Estados Unidos reconheceriam somente o Brasil Norte, em Minas Gerais, e seria uma luta fratricida. Essa decisão de Jango de não resistir e ir para o exílio foi sábia e vitoriosa. Ele não deixou derramar sangue entre os brasileiros. Poderia ter acontecido como no Vietnã.

Brizola e Miguel Arraes nunca foram amigos de fato?
No exílio, Arraes estava na Argélia e o serviço argelino detectou que ele e Brizola estavam na lista da Condor. Arraes pediu ao (ex-deputado) Neiva Moreira para comunicar que Brizola e meu pai tomassem cuidado.

Era para matá-los...
Em 1973 o Uruguai já era uma ditadura. Perseguia o pai, que não estava mais cassado, porque a pena era de 10 anos. Ele dizia que não ia renunciar ao asilo político, e pediu residência ao ministro, mas ela foi negada. Ele ficou numa situação sem residência legal no Uruguai e na Argentina, e não dormia duas noites no mesmo lugar. Ficava nessa instabilidade, não tinha passaporte. Por isso dizemos que mataram ele de qualquer jeito, com veneno ou com perseguição.

Como vítima do arbítrio da ditadura, como enxerga as manifestações atuais pedindo a volta do regime militar?
Uma pergunta contundente e oportuna. O Brasil viveu 21 anos de ditadura feroz, a reconquista da democracia foi penosa. Hoje, estamos vendo esse antagonismo de ódio, que é muito grave. Ver os jovens pedindo a volta do regime, isso é porque eles não conhecem o que foi a ditadura. Querem liberdade de expressão e pregam a volta da ditadura, onde não se podia escrever várias coisas que foram censuradas. Temos que fazer uma profunda recuperação desse momento histórico. O Brasil tem um esquecimento muito grande da sua história, fazer uma reflexão política e transmitir a essa nova geração o que aconteceu e foi muito grave. Aqueles que não conhecem o que aconteceu tendem a repetir a história.

E quanto às ameaças do presidente Donald Trump?
Isso atinge diretamente a soberania nacional. Jango enfrentou o imperialismo americano. A deposição dele já vinha sendo costurada pelos próprios Estados Unidos, pelo John Kennedy e depois pelo Lyndon Johnson. Houve uma intervenção política de dinheiro. A eleição de 1962, através da CIA, financiou 500 parlamentares e elegeu 168. Hoje a direita brasileira quer anistia, dizendo que o Brasil tem que se ajoelhar para Trump se não der anistia a Bolsonaro. Isso é absurdo. Cuidar da soberania brasileira não é questão política interna como vemos alguns congressistas defendendo e deixando a nossa soberania de lado.

Jango tinha planos de disputar novas eleições?
Na época que ele faleceu, não havia ainda essa perspectiva. Era um regime muito fechado, mas evidentemente uma das coisas que ele mais sentia saudades do Brasil. Se tivesse a oportunidade, acho que não deixaria de ter participação política, talvez não direta. Mas evidentemente que a bagagem do golpe, das reformas de base, eram tão importantes.

E o senhor?
Não penso em candidatura.

Sua luta então é pelas investigações? 
Solicitamos a investigação porque não é um problema da família. As pessoas confundem isso. É um problema do Brasil. Jango foi expulso do país, o único presidente que morreu no exílio. É um dever da nossa pátria saber o que aconteceu com um de seus presidentes.

Mas dá para enxergar o seu pai na política atual?
Evidentemente que temos um espaço temporal muito significativo. Mas evidentemente que a luta daquele grupo de jovens do governo João Goulart era um projeto de nação. A ditadura, em certo momento, derrubou o governo, alegando incapacidade. Mas não se derruba um governo faltando um ano para as eleições. E falar em incapacidade com Darcy Ribeiro, Celso Furtado, Paulo Freire, Valdir Pires, Evandro Lins e Silva, Barbosa Lima Sobrinho... Esses eram os homens incapazes do governo João Goulart? Todos se destacaram no mundo inteiro após o exílio. E até hoje tem esse ranço com o projeto de desenvolvimento nacional. Mas se esses homens ainda estivessem na área política, não recuariam desse projeto de nação.