opinião

A guerra agora é outra

Ainda sem uma versão amplamente difundida para o português, o termo "weaponization of trade" vem ganhando espaço na mídia internacional. Uma tentativa de explicar o termo seria a adoção de medidas retaliatórias no comércio internacional a fim de atingir objetivos específicos de política externa.    

No livro “The Economic Weapon”, o historiador Nicholas Mulder investiga meticulosamente o emprego das sanções como uma ferramenta da “guerra moderna”. Os EUA, fazendo uso do seu peso e liderança na ordem internacional pós-Guerra Fria, foi o país que mais impôs sanções com o objetivo de pressionar outros países em questões como proliferação nuclear, desarmamento, direitos humanos ou mudanças de regimes antagônicos aos seus interesses geopolíticos. O ex-secretário de estado norte-americano Henry Kissinger certa vez declarou que os EUA não possuíam aliados ou inimigos permanentes, mas apenas interesses. 


No entanto, o século XXI vem sendo marcado pela transição para uma ordem multipolar. O reerguimento da Rússia e a ascensão da China reconfiguraram a balança de poder e ambos acabaram se tornando parceiros políticos e comerciais estratégicos de países sancionados pelos EUA como o Irã, o país mais sancionado do mundo até 2021 de acordo com o estudo “Global Sanctions Data Base”. Com o início do conflito entre Rússia e Ucrânia no começo de 2022, os russos passam a ser o ponto focal das sanções ocidentais. 


Neste contexto, a aplicação de sanções pelos EUA, apesar de ter impacto negativo nas economias dos seus alvos, não foi capaz de atingir seu objetivo maior e a efetividade destas medidas punitivas passou a ser amplamente questionada pela comunidade internacional. O recente ataque militar dos EUA às instalações nucleares iranianas, sob suspeita de estarem muito próximos de obterem sua bomba atômica, parece comprovar esta visão. 


Frente ao novo arranjo de peças no tabuleiro da geopolítica, a fim de evitar desvios (by-pass) e triangulações, os norte-americanos passaram a impor sanções secundárias, principalmente aquelas de caráter financeiro, contra terceiros países e empresas que porventura viessem a se relacionar com os países-alvo de suas sanções primárias, bem como empresas e indivíduos constantes da famosa "black list" da OFAC (secretaria do Tesouro dos EUA responsável pela implementação de sanções econômicas e financeiras).


O segundo mandato do presidente americano Donald Trump certamente será o divisor de águas daquilo que chamávamos de “guerra comercial” com o anúncio da imposição generalizada de tarifas escorchantes baseado numa metodologia altamente questionável contra aqueles parceiros com os quais possuem déficits comerciais de bens e serviços e até mesmo contra os membros do acordo comercial USMCA entre EUA, México e Canadá em 2020 que atualizou o antigo NAFTA (North American Free Trade Agreement), em vigor desde 1994.


Em meio à surpresa e indignação de diversos países, o anúncio da imposição da tarifa de “apenas” 10% contra o Brasil parecia bom demais para ser verdade. O superávit dos EUA na relação bilateral com o Brasil e a neutralidade histórica do nosso país em grandes temas geopolíticos pareciam que iriam nos ajudar a voar baixo sem sermos avistados no radar norte-americano. Porém, a Cúpula dos BRICS no Rio de Janeiro colocou os holofotes sobre o Brasil. Os temas sensíveis aos interesses norte-americanos do documento final da Cúpula acabaram com a nossa camuflagem. 


O segundo anúncio com a imposição de tarifas de 50% a partir de 1 de agosto, sem o mesmo “rationale” e embasamento nos critérios de balança comercial bilateral, levou o governo brasileiro a publicar o decreto presidencial 12.551/2025 que regulamentou a Lei no 15.122, de 11 de abril de 2025 (Lei da Reciprocidade Econômica) a fim de possibilitar medidas de retaliação. Até o presente momento o Brasil não adotou nenhuma contramedida e os representantes dos principais setores produtivos afetados defendem a busca de diálogo e a negociação. A relevância do mercado norte-americano para os setores de aço, ferro, produtos florestais, carnes, café e suco de laranja coloca o agronegócio brasileiro na berlinda.


A administração norte-americana reagiu rapidamente e anunciou uma investigação no Brasil sob a Seção 301 da Lei de Comércio de 1974: "A investigação buscará determinar se atos, políticas e práticas do Governo do Brasil relacionados ao comércio digital e serviços de pagamento eletrônico; tarifas preferenciais injustas; interferência anticorrupção; proteção da propriedade intelectual; acesso ao mercado de etanol; e desmatamento ilegal são irracionais ou discriminatórios e oneram ou restringem o comércio dos EUA." Segundo entrevista recente do ex-embaixador Rubens Ricupero, além do país já estar condenado com os possíveis resultados da investigação, ele pode também ganhar tempo pois não existe data pré-fixada para seu término e deve começar em setembro próximo.


O governo brasileiro via seu vice-presidente, Geraldo Alkmin, pretende negociar e levar o caso para a Organização Mundial do Comércio - OMC dado que o tarifaço dos EUA fere os principios fundamentais daquela instituição e inclusive a base do GATT 1947 como a o princípio da "Nação Mais Favorecida" (NMF) onde todos devem estar sujeitos à mesma tarifa pelo país que impõe a tarifa. Porém, é marcante o afastamento dos EUA dos órgãos multilaterais e o esvaziamento do sistema de solução de controvérsias da OMC com a paralisação do órgão de apelação desde 2019. 


Em meio à escalada de tensão entre EUA e Brasil, o secretário-geral da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), Mark Rutte, declarou que China, Índia e Brasil precisam apoiar um acordo de paz entre Rússia e Ucrânia e, se não houver uma solução para o conflito em 50 dias, podem sofrer sanções secundárias, com tarifas de 100%, se continuarem comprando petróleo e seus derivados, como gasolina e diesel, da Rússia. A mesma ameaça foi feita pelo governo norte-americano. Durante o ano de 2024 e até junho de 2025, 60% da gasolina e diesel foram importados da Rússia pelo Brasil. Este tipo de medida poderia ser ainda mais devastador para o agronegócio brasileiro se pensarmos na nossa dependência quanto à compra de fertilizantes da Rússia.


Pouco conhecida e comentada, o Brasil dispõe de uma lei de sanções internacionais (Lei 13.810/2019), a qual estabelece mecanismos para a internalização automática das sanções internacionais impostas no âmbito das resoluções do Conselho de Segurança das Nações Unidas.  Por outro lado, o caráter de extraterritorialidade das sanções unilaterais norte-americanas mina a soberania dos países e o princípio de não-intervenção, trazendo à tona uma grande discussão sobre a legitimidade destas medidas à luz do direito internacional.

O Brasil precisa analisar cuidadosamente seus próximos passos neste campo minado do "American Economic Warfare", outro conceito ainda sem tradução que se refere às ferramentas econômicas a serviço da política externa norte-americana. No seu recente livro "Chokepoints: American Power in the Age of Economic Warfare", o autor norte-americano Edward Fishman, introduziu a ideia de "pontos de estrangulamento" como fraquezas estratégicas na economia global que os EUA podem explorar como tecnologias essenciais (microchips), o acesso a recursos críticos (energia) ou a supremacia em sistemas financeiros (dólar).


A guerra agora é outra, mas a nossa desvantagem em relação ao "arsenal bélico" precisa ser pensada de forma estratégica. Parece que estamos no meio do caminho entre "manda quem pode, obedece quem tem juízo" e "se ficar o bicho pega, se correr o bicho come".


* Especialista em relações internacionais e gestão de negócios internacionais com atuação executiva de 20 anos no agronegócio brasileiro.


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