LITERATURA

Flip: "Luta das pessoas negras nunca foi para dividir", dizem Tiago Rogero e Ynaê Lopes dos Santos

Jornalista e historiadora discutiram racismo brasileiro, cotas, mestiçagem e reparação financeira à população afrodescendente

Ynaê Lopes dos Santos e Tiago Rogero - reprodução

O que o Brasil veria se se olhasse no espelho? Essa pergunta norteou a nona mesa desta 23ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), “O Brasil no espelho”, que reuniu o jornalista Tiago Rogero e a historiadora Ynaê Lopes dos Santos sob a mediação da escritora Juliana Borges nesta sexta-feira (1º), às 12h. A mesa foi uma verdadeira aula, acompanhada atentamente pelo público, que não se cansou de aplaudir os autores.

Rogero é correspondente do jornal britânico The Guardian na América do Sul e autor do “Projeto Querino”, podcast que virou livro e propõe um olhar afrocentrado sobre a história do Brasil. Ynaê é professora da Universidade Federal Fluminense (UFF) e autora de livros como “Irmãs do Atlântico: escravidão e espaço urbano no Rio de Janeiro e em Havana (1763-1843)”, publicado pela Record.

Os dois insistiram que a imagem do Brasil mostrada por um espelho honesto não é nada lisonjeira.

— A imagem não vai ser bonita, o Brasil não está preparado para ver — disse Rogero, que falou de uma reportagem recente que ele fez em Curitiba com refugiados cubanos. — O brasileiro adora falar que é um povo carinhoso, acolhedor, mas os cubanos que eu ouvi, a maioria afrodescendente, disseram que o brasileiro é fechado. Mas será que o brasileiro é fechado com todo mundo? É fechado com o imigrante europeu? O imigrante europeu, para fazer parte da galera, não custa muito. A imagem do Brasil no espelho é mais feia do que o brasileiro quer admitir.

Racismo e modernidade
Ynaê insistiu que o racismo “se estrutura como uma lógica de organização social” que foi determinante para o estabelecimento da modernidade. Em seu último livro, ela estudou como o Rio de Janeiro e Havana se desenvolveram como as maiores cidades escravistas do mundo no século XIX. Ela explicou como, após a Revolução Haitiana, na virada do século XVIII ao XIX, que proclamou a república e aboliu a escravidão, as elites de Brasil, Estados Unidos e Cuba dobraram a aposta no cativeiro, em articulação com a Revolução Industrial na Europa.

— Em última instância, a Revolução Industrial só aconteceu porque tinha escravidão aqui. O capitalismo é mais complexo do que a gente imagina, cabe muito mais coisa nele, inclusive a escravidão. A elites se organizaram para manter a escravidão quando já havia um discurso abolicionista muito forte. Brasil e Cuba são dois territórios que apostaram no que o (historiador) Luiz Felipe de Alencastro chamou de “escravidão do futuro”.

As cotas também foram tema da mesa. Ynaê celebrou a transformação que as ações afirmativas provocaram nas universidades.

— Sou radicalmente a favor das cotas. Tem que ter cota para tudo no Brasil. A gente precisa mudar agora a vida das pessoas negras — disse a historiadora. — Tem que tributar as grandes fortunas também, porque não existe antirracismo sem distribuição de renda.

Rogero lembrou que as cotas, diferentemente do que dizem os críticos, já são sociais e beneficiam não só pessoas negras, mas também pessoas pobres, indígenas e com deficiência.

— A luta das pessoas negras nunca foi para dividir. Quando os japoneses chegaram na Liberdade, em São Paulo, seus filhos foram acolhidos nas escolas da Frente Negra Brasileira — afirmou. — Obviamente quem mais se prejudica com o racismo são as pessoas negras, que não têm direito a sonhar, a viver. Tudo pode estar dando certo, seu time pode ter ganhado a Copa do Brasil, mas uma experiência talvez velada do racismo pode acabar com tudo. A responsabilidade de resolver isso é das pessoas brancas, que se beneficiam do racismo. A gente segue lutando para fazer um país melhor para todos. Um país onde todos têm condições para se desenvolver não vai ser melhor para todo mundo?

Os autores também frisaram a necessidade de reparar financeiramente as violências cometidas contra a população negra ao longo da história do Brasil.

‘Afro-polaco’
Paulo Leminski, autor do homenageado nesta Flip, também deu as caras na mesa. A mediadora Juliana Borges lembrou que o poeta se descrevia como “afro-polaco”, o que não significava uma adesão ao mito da democracia racial. A partir dessa provocação leminskiana, ela propôs um debate sobre a mestiçagem brasileira.

— A mestiçagem é um tema incontornável, nós somos um país mestiço. A questão é somos ensinados a tomar a mestiçagem como sinônimo de brandura. Há dois mitos na História brasileira. O mito da democracia racial e o de que somos uma sociedade harmoniosa e pacífica, quando em vários momentos vivemos à beira da guerra civil. A junção desses dois mitos deu certo e a mestiçagem serviu para explicar o Brasil — afirmou Ynaê. — O problema não é reconhecer que a mestiçagem é incontornável, mas como a gente lê a mestiçagem. Historicamente, ela é fruto da violência.

A mesa acabou com Ynaê e Rogero sendo aplaudidos de pé pelo público.