Na crise, esperança heroica e esperança bíblica
“Quando captei o sentido profundo do mundo, foi sua simplicidade que me encantou.”
Albert Camus.
Tempo obscuro. De tiranos e tiranetes. Czares e rasputins. Em que soberania é moeda de troca. Agressão a território alheio é naturalizada em mesa de negociação, que é disfarce. Infâmia da fome infantil é servida como auto-engano, velha tática de poder. Encanecido.
Mas, sempre há (e haverá) esperança. Esperança é virtude. Prática. E tímida. Há dois tipos de esperança: esperança heroica, resultado da distância entre o eu e a realidade. E esperança bíblica, decorrente da inspiração que recebemos do divino. É possível ter esperança? Ou, melhor: é possível viver sem esperança? Não.
Esperança heroica é fio humano trançado na alma. É fiapo. Trabalhado no espírito. Na vontade. Verdadeiro. E talvez resistente. Por sua vez, esperança bíblica é transcendência. Que vem da fé. Do divino. Profética. Oculta entre o milagre da vida. E o mistério da morte. Ambas, esperanças, podem subsistir. Depende do homem. De sua vontade. Ou de sua crença.
A esperança heroica é suada. Tecida nas dobras do cotidiano. É corajosa. Plantada na terra. Já a esperança bíblica é uma experiência de alegria. É humilde. Filtrada do alto. Conforme Luiz Felipe Pondé, quando Dostoiévski disse que “a beleza salvará o mundo”, ele se referia à esperança bíblica. Nesse sentido, só os alegres verão a Deus.
Ter esperança é acreditar no humano: no racional, no cognitivo, no social, no epistemológico. É saber-se, na plenitude consciente, que a vida é efêmera. Somos parte da finitude. E ponto final. É respeitar limites. E reconhecer que não devemos assumir o risco de demasiadas posses. Que são improváveis. E inaproveitáveis. Nada levamos no depois. Antes, fiemos na lealdade.
Certos escritores são anatomistas do pensar. Como o brasileiro de Pernambuco, Nelson Rodrigues. Iluminam a fronteira do viável. E do impensável. Ser racional, dizia ele, “é um longo e dolorido processo, tal como a busca da santidade”. Existe esperança diante da desumanidade? Diante do cinismo lapidado a ameaças atômicas?
Sim. A vida moral resiste à morte vã. Dos inconsequentes transitórios. Esperança imersa na dor. Na paciência de Jó, talvez. Mas, afinal, sobreposta. Transcendente. No amanhã civilizatório. Desembarcado na aurora do inevitável dia seguinte. A esperança moral está ali.
Como escreveu Camus: “O destino humano é inexorável: nascer, crescer, envelhecer e morrer.” A esperança do mundo existe quando, com simplicidade, compreendemos essa trajetória. E a assumimos. Com encanto de viver. E espanto de sua beleza. Cônscios de que não há esperança na solidão. Que a esperança é valor partilhado com o outro.
A esperança é passível de nascer em todas as estações. Inclusive nas tempestades. E será, entre raios e trovões, que mais precisamos dela. Talvez, por isso, Camus acentuou: “Não creio no mundo. Mas acredito no homem”. Essa reverência é um suspiro do sentimento. Porque é onde mora a generosidade. E a generosidade estimula o bem. Patrono da esperança.
___
Os artigos publicados nesta seção não refletem necessariamente a opinião do jornal. Os textos para este espaço devem ser enviados para o e-mail cartas@folhape.com.br e passam por uma curadoria antes da aprovação para publicação.