opinião

Por que morrem os gênios e quebram-se os moldes?

Costumo dizer que sou um discreto privilegiado, que, na medida do possível, alcançou algumas conquistas.. Não tive berço da riqueza material e sequer cheguei perto desta condição. Mas, o que tenho alcançado nesta minha trajetória é fruto de um esforço consequente, que advém, sobretudo, de uma boa formação escolar. Agrego a isso alguma pitada de sorte, que bem faz tê-la em determinadas situações.Tamanho tesouro me ensinou a entender outro padrão de riqueza, dado por valores civilizatórios, nos quais pude extrair uma base humanista, com elementos de um verniz altruísta. Diante desse grau de aprendizado, penso que tenho me superado, mesmo que diante de um realismo às vezes árduo, cujo alcance me parecia ser duvidoso ou incerto. O que vale é, que até neste momento, o extrato da conta revela um saldo que me deixa imbuido no  seguir adiante.

Bem, quando me reportei àquele privilégio, foi porque essa satisfação particular representa conquistas variadas. Uma dessas, por exemplo, tem sido marcada pelas oportunidades criadas por situações que me levaram a conhecer "gente que fez ou faz", num espectro que vai da idolatria à genialidade. E isso me parece algo precioso. Meu exemplo clássico foi o acesso que pude ter, em algumas ocasiões, a um cidadão do mundo chamado de, simplesmente, Pelé. Um ídolo da infância, que pelo contexto natural, mais me parecia uma figura abstrata, inalcançável.

Bem, só por essa condição excepcional, exalto aqui o quanto foi essencial nutrir meu aprendizado. O realce que reservo à tamanha oportunidade, tem-me proporcionado o reconhecimento que consagro às referências. Justo aquelas que me marcaram e foram capazes de se traduzirem em influências (pro)positivas. Até mesmo para as situações que ficaram longe dos meus olhos, sempre procurei que estivessem bem próximas da minha mente e do meu coração. 

Dito isso, chego ao objetivo deste texto, em forma de manifesto de admiração. De pronto, começo por tratar de uma nova estada minha, na aprazível cidade de Gramado. Nesse reencontro com o solo gaúcho, não poderia desconsiderar algumas referências literárias que tanto me inspiraram, em especial, nesta minha aventura de um mero escriba. Entre os Veríssimos (pai e filho), Quintana e Scliar, diria que meu sentimento de "pernambucho" sempre aflorou. Por ter sido este pacato pernambucano, contagiado pelo que assimilou nas 32 edições do Festival de Cinema de Gramado, digo logo que isso foi uma outra página importante da minha história. Para quem não sabe, há também em tela esse outro registro, que passa pela literatura.

Pois bem, um certo senso de frustração ainda me cercava, justo porque não tive a oportunidade de chegar mais perto de Érico, Quintana e Scliar. Estes, certamente, já ocupam algum espaço importante da mimha memória. A chance possível de uma oportunidade consumada, estava em Luís Fernando Veríssimo,  que incluo no meu rol das genialidades brasileiras. Então,  só em saber que algum amigo gaúcho poderia ter-me dado acesso à ultima das minhas referências, sempre foi uma real esperança. Claro que a fragilidade da saúde de Luís Fernando era um fator quase impeditivo, mas sua resistência em agarrar-se ao tempo para fazer valer seu "sonho de não morrer nunca", foi o fio do novelo da minha oportunidade. Pena que soube, através de amigos presentes ao último festival, que aquele fio estava no final. A constatação da finitude de mais esse gênio nacional foi bem como aludiu Dori Caymmi, na belíssima letra da musica Desenredo: "a morte tece o seu fio, de vida feita ao avesso...a vida é o fio do tempo e a morte é o fim do novelo".

De fato, acordar diante do anúncio de uma morte tão indesejada (por ele e por nós), foi mais que mera tristeza. A indesejada chegou, exatamente, neste tempo de trevas, que tanto assusta o mundo dos civilizados. Um pouco antes, a doença já havia tirado de Luís Fernando sua capacidade ímpar de enxergar o mundo, por meio de suas crônicas em 3 I: inteligentes, instigantes e irônicas. Esse criador e suas criaturas fizeram das peças literárias construídas em plena harmonia, um mundo de liberdades criativas de leveza sustentável.

A propósito, para quem já sabia que esse mundo "não era assim tão ruim, porque só estava mal frequentado", julgo que, nos dias de hoje, Luís Fernando teria ainda mais motivos para "caminhar do outro lado da humanidade", diante de tanta estupidez e soberba. Nessa hora, mergulho no seu imaginário e posso até perceber que a reação dos seus personagens poderia ser outra. Seja diante da ortodoxia conservadora do engajamento político que está por trás da "Velhinha de Taubaté". Ou mesmo, da contestável brutalidade da "técnica do joelhaço", presente em " O Analista de Bagé". Creio que a barbárie humana atingiu tamanha gravidade, que eles recorreriam à mínima percepção do estrago promovido no processo civilizatório. Quero dizer com isso, que as criaturas de todo esse universo "verissiminiano", foram geradas para nos divertir, mesmo que diante de circunstâncias que cabiam ser enfrentadas através da crítica inteligente que faziam.

Desse modo, pela sensibilidade do criador, julgo que as criaturas serviram como instrumentos sutis das suas pitadas de ironia (às vezes, cáustica). Hoje, estariam surpresas com a extensão e gravidade de uma enfadonha e impertinente agressão política. Afinal, criaturas de criadores geniais, sempre foram inspiradas por convicções que, em algum momento, entenderam que o processo civilizatório reencontra seu eixo de equilíbrio. E que, por mais que as democracias estejam frágeis e sob tensão, os ensinamentos históricos levam a crer na sua capacidade de superação, perante os impulsos do irracionalismo populista.

O legado intelectual de Luís Fernando Veríssimo tem toda essa ordem de grandeza. Como leitor e admirador da sua vasta e rica obra, restaram-me lições, aprendizados e influências. Fica também aquela lacuna de jamais ter contado com o privilégio de vê-lo e/ou ouvi-lo de modo próximo, conforme outras experiências que enfrentei. Por maior que tenha sido o acordo dele com o tempo, para deixar a vida mais longeva. E tudo isso, sem falar do fato que a perda de gênios nos seus ofícios, não deixa moldes para a sociedade. 

De fato, uma dura realidade para um mundo que se revela ainda mais preocupante. Sem as referências de lideranças. Sem os toques de genialidades.


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