Câmara adia debate sobre anistia enquanto julgamento do STF acumula críticas ao perdão a golpistas
Ministros se manifestam sobre proposta em debate pelo Legislativo
No mesmo dia em que o Supremo Tribunal Federal (STF) registrou em plenário mais uma crítica à possibilidade de anistia aos envolvidos na trama golpista, a Câmara dos Deputados evitou debater a proposta de perdão, empurrando qualquer discussão para depois do julgamento de Jair Bolsonaro e mais sete réus.
Na sessão de julgamento desta terça-feira, Flávio Dino destacou o caráter pedagógico do julgamento e a função preventiva do direito penal. Para ele, é preciso que fique claro que não há espaço para aventuras semelhantes no futuro.
— Não há a menor dúvida de que crimes como esses não podem ser perdoados. Anistiar crimes contra a democracia seria enviar a mensagem de que podem se repetir. Seria um salvo-conduto, e não um julgamento — afirmou Dino.
O ministro também chamou atenção para a gravidade simbólica da mobilização que se seguiu às eleições de 2022.
— Os acampamentos nas portas dos quartéis jamais deveriam ter existido, e espero que jamais voltem a acontecer. Assim como espero que nenhum militar vá a convescotes partidários, utilizando a farda para tecer considerações políticas. A função das Forças Armadas é técnica e profissional, jamais partidária — declarou.
Relator da ação penal da trama golpista, o ministro Alexandre de Moraes já havia ressaltado na semana passada que as ameaças feitas por Bolsonaro em discursos de 7 de setembro configuraram graves tentativas de interferir no Judiciário.
— Só nas ditaduras, juízes ou ministros fazem o que ditador determina. No nosso Supremo Tribunal Federal, isso não acontece — afirmou Moraes, ao destacar que não cabe relativizar a participação de quem ocupava cargos centrais no governo.
O ministro destacou que não se tratavam de falas isoladas, mas de ameaças repetidas ao longo dos anos, destinadas a corroer a autonomia judicial.
— Tem tempo ainda para arquivar seus inquéritos? Não. Essas frases, ditas no 7 de setembro, já indicavam a tentativa de interferir na independência do Judiciário. E recentemente, frases semelhantes foram ditas para tentar uma nova interferência, dessa vez internacional, na autonomia do STF — acrescentou.
Moraes ainda reforçou que os réus buscavam conferir uma fachada de legalidade ao plano golpista ao acionar as Forças Armadas, mas que a responsabilidade de cada um está demonstrada nos autos.
— A responsabilidade dos acusados está demonstrada pela articulação de atos violentos e pela tentativa de criar uma fachada de legalidade para um golpe de Estado. Não cabe relativizar a participação de quem ocupava cargos centrais no governo — disse.
O ministro Luiz Fux, que ainda apresentará seu voto no julgamento, também já se posicionou em ocasiões anteriores de que crimes contra a ordem democrática são insuscetíveis de anistia, alinhando-se ao entendimento consolidado pelo STF.
A reação no Congresso
Enquanto o Supremo consolidava esse entendimento, a Câmara buscou ganhar tempo. Em reunião de líderes, o presidente da Casa, Hugo Motta, descartou levar a proposta a votação nesta semana.
— Não há previsão nem de pauta e nem de relator. Nada polêmico será votado nesta semana — afirmou Motta, que definiu como prioridade matérias de consenso, em sessões remotas, até a conclusão do julgamento no Supremo.
O gesto foi lido como um freio à pressão do PL e de aliados de Jair Bolsonaro, que intensificaram a campanha pública pela anistia no último fim de semana. Líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (RJ), havia reiterado o pedido para que o tema fosse colocado em votação já na próxima semana.
No Senado, o presidente da Comissão de Constituição e Justiça, Otto Alencar (PSD-BA), já avisou que não pautará uma proposta ampla que alcance agentes de Estado e o próprio Bolsonaro.
— Anistiar agentes de Estado é inconstitucional. Quem atentou contra a democracia deve ser punido — disse Otto em entrevista ao GLOBO.
O presidente da Casa, Davi Alcolumbre (União-AP), tenta costurar uma versão alternativa, mais restrita, que diferencie financiadores e organizadores dos atos de 8 de janeiro de participantes de menor importância. Mas o núcleo bolsonarista já deixou claro que não aceitará esse tipo de recorte.
O texto apresentado pela oposição, no entanto, vai além de perdoar apenas os atos do 8 de janeiro. Ele prevê anistia a todos os investigados, processados ou condenados desde 14 de março de 2019, incluindo manifestações de rua, acampamentos em frente a quartéis e até publicações em redes sociais consideradas ofensivas às instituições ou críticas ao processo eleitoral. O projeto também alcança crimes de dano ao patrimônio público, organização criminosa e até inelegibilidades decretadas pela Justiça Eleitoral.
Pelo artigo 1º, ficariam anistiados desde quem participou de protestos e espalhou mensagens em redes sociais até quem financiou, planejou ou executou atos violentos contra o Supremo e o Congresso. Na prática, a aprovação significaria o arquivamento de inquéritos em curso, a revogação de multas e indenizações já aplicadas e a reversão de restrições políticas e eleitorais.