Entenda o debate jurídico que pode afetar penas de Bolsonaro e aliados
Alexandre de Moraes disse que não vê possibilidade em se aplicar regra da consunção no caso
Ao defender ontem a condenação dos réus do núcleo crucial da trama golpista, os ministros Alexandre de Moraes e Flávio Dino marcaram posição em um dos principais debates jurídicos que permeiam o julgamento na Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a trama golpista.
Para o relator da ação, que foi seguido por Dino no entendimento, os crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e o de golpe de Estado são autônomos e distintos entre si, o que impede a absorção de um pelo outro, como as defesas dos réus têm argumentado. No passado, o ministro Luiz Fux já manifestou avaliação contrária à dos colegas, o que indica que o tema deverá ser foco de debate entre os magistrados nos próximos dias.
Chamada de consunção, a regra da absorção, evocada pelos advogados de defesa, é aplicada quando são identificados dois tipos penais nas condutas dos acusados e um deles servindo de etapa ao outro. Nesses casos, o crime fim prevalece para evitar uma duplicidade de punições:
— A absorção acontece, por exemplo, quando um crime é meio para a prática de outro. Alguém falsifica um recibo médico para diminuir o imposto de renda. Ele vai ser processado por sonegação ou falsificação? A jurisprudência é que será processado apenas por sonegação, e a fraude é absorvida — explica o professor de Direito Penal da FGV-Rio Thiago Bottino, que ressalva: — A ideia do crime meio e do crime fim não vai ter uma única solução.
Distinção entre tipos
No entendimento de Moraes, a aplicação da consunção na trama golpista não se sustenta, pois os tipos penais de abolição do Estado Democrático de Direito e o de golpe de Estado, dispostos respectivamente nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal, protegem aspectos distintos. O primeiro trata de condutas que visam tentar impedir ou restringir “o exercício dos poderes constitucionais”, enquanto o segundo envolve iniciativas para derrubar eleitos para chefiar o Poder Executivo.
— Uma coisa é atentar contra o funcionamento das instituições democráticas. Como eles (os envolvidos na trama golpista) fizeram isso? Com uma campanha de desacreditação da Justiça Eleitoral, ataques a ministros, chamando embaixadores para dizer que o processo eleitoral não é confiável — avalia Bottino, ao explicar como os tipos penais seriam aplicados no caso conforme entende Moraes. — Os atos para depor o governo são outras situações: a reunião com os chefes das Forças Armadas, a Operação Punhal Verde Amarelo, que visava matar o presidente e o vice eleitos.
O ministro do STF citou episódios da história brasileira para exemplificar a distinção proposta entre os dois artigos penais. A chamada “Noite da Agonia” de 1823, quando Dom Pedro I dissolveu a assembleia reunida para elaborar uma constituição brasileira, seria um caso de abolição do Estado Democrático de Direito. Já a Revolução de 1930, quando o grupo liderado por Getúlio Vargas derrubou o governo de Washington Luís e impediu o presidente eleito Júlio Prestes de assumir o poder, seria um golpe de Estado.
— A minuta do golpe visava tentar abolir o Tribunal Superior Eleitoral, órgão do Poder Judiciário, a substituindo por uma comissão composta por um grupo político. Claramente, assim como na “Noite da Agonia”, é o 359-L. Se nós formos para o Golpe de 30, que alguns chamam de Revolução de 30, seria tipificado no 359-M — disse Moraes, antes de concluir. — Tanto no primeiro caso, quanto no segundo, obviamente por terem sido consumados, jamais qualquer pessoa foi responsabilizada.
Em seguida, ao citar o período da ditadura militar, o ministro deu ainda um terceiro exemplo histórico para fundamentar o argumento de que ambos não só se tratam de crimes distintos como podem coexistir. Assim, a deposição de João Goulart em 1964 seria um golpe de Estado, e os atos institucionais que fecharam o regime nos anos seguintes se encaixariam na definição de Abolição do Estado de Direito. Moraes citou o AI-2, que aumentou o número de ministros do STF em uma ação para diminuir a independência do Judiciário, e o AI-5, que submeteu o Legislativo ao Executivo. O relator também mencionou a aposentadoria compulsória dos ministros do STF em 1969.
— A abolição não necessita de um golpe de Estado para ocorrer, assim como este independe de restrições aos outros poderes. Inclusive, é possível ter um golpe de Estado no qual os outros poderes continuem a serem exercidos. É uma situação complexa, mas esses crimes não passam um pelo outro com uma relação de interdependência. Eles têm uma relação de exterioridade, mas há uma reverberação — comenta o professor de Direito Penal da Uerj, Antônio José Teixeira Martins.
Visão de fux
Colega de Moraes na Primeira Turma, o ministro Luiz Fux, por sua vez, tem entendimento diferente e já defendeu em decisões anteriores a absorção do crime de abolição do Estado democrático de direito pelo golpe de Estado, sendo o primeiro ato executório do segundo. “As circunstâncias que tipificam os crimes não são autônomas quando ocorrem no mesmo contexto fático, podendo-se falar, até mesmo, em relação de subordinação ou dependência entre os tipos penais”, escreveu Fux ao julgar ações do 8 de Janeiro.
Caso a tese do ministro, que é minoritária na Corte, seja acolhida, pode ter reflexos no cálculo da pena dos envolvidos na trama golpista.
— Se um crime absorve o outro, você responde apenas por um deles, o que prevalece. Não se teria a pena somada pelos dois crimes — diz Martins.