entrevista

Viúva fala sobre legado e herança de Arlindo Cruz, e dos ataques machistas que sofreu

Babi Cruz lembra ainda os últimos momentos do marido e conta como se sentiu diante das críticas por se permitir namorar de novo

A esposa Babi, Arlindo e os filhos Arlindinho e Flora - Divulgação

Era 14 de setembro quando o menino Arlindo chegou em casa da escola avisando: "Chamei todo mundo para o meu aniversário". A mãe só apontou a geladeira vazia. Mas o garoto apontou logo a solução: a goiabada e a groselha sobre a mesa bastariam para fazer os amigos lamberem os beiços.

Assim aconteceu. Na verdade, foi assim a vida toda: o artista se virava com o que tinha. Deixar de celebrar é que não ia. Era ele próprio o “fermento da felicidade que fazia a festa crescer”, como define Babi Cruz, sua companheira por 40 anos.

Hoje, se estivesse vivo e com saúde, samba, futebol, churrasco e cerveja comeriam soltos numa rave que iria até o dia seguinte no Cheirinho do Gol, campo de futebol no Recreio, onde Arlindo comemorou muitos anos de vida. É nessas lembranças que Babi se agarra para lidar com o vazio, como conta nesta entrevista:

Como você está?

Um dia de cada vez. Em alguns, mais forte e inteira; em outros, mais fragilizada, tristinha, saudosa. Mas sempre com a sensação de dever cumprido, do ciclo que se encerrou e que tem que recomeçar em nome de todo o legado, da nossa vida. Vou continuar a respirar Arlindo Cruz, a história, a poesia dele através do infinito que é Arlindo. Meu maior objetivo é levar, através do Instituto Arlindo Cruz, o legado, o nome dele em milhares de projetos. Arlindo é uma fonte inesgotável de possibilidades dentro da arte.

Que projetos há pela frente?

Estamos batalhando para conseguir um lugar para sediar o Instituto Arlindo Cruz, abrigando a memória e acervo dele. Criei uma exposição itinerante que vai espalhar por cidades mini acervos com fotos, figurinos, canções dele. Em dezembro, acontecerá em São Paulo, quando também teremos um circuito Arlindo Cruz passando por pontos turísticos de Maricá, com curadoria de Milton Cunha. Em Janeiro, a expo vai para em Vitória. Vai ter filme de ficção que ainda estamos alinhavando, musical biográfico. Há umas 100 músicas inéditas. Antes, ouvi-las era como arrancar casca de ferida. A gente ouvia a voz dele falando, brincando... toda vez que mexíamos nisso, doía. Agora, estamos melhores. É a hora de ver isso. Antes, cuidar dele era a prioridade.

Você e Arlindinho concorreram samba na Unidos da Tijuca...

No enredo Carolina Maria de Jesus, mulher que tem uma história brilhante de superação, que catou lixo, escreveu livro e conseguiu criar e formar seus filhos. Esse samba, para mim, foi um reencontro com a minha história de luto. Porque não conheço mulher que, nas últimas décadas, foi mais ofendida, chacoteada, tripudiada que a Babi. Tudo isso em nome de uma verdade, de um empoderamento necessário perante a sociedade. Escrever o samba dela foi rever a minha história, porque meu samba é uma mensagem de força, de fé, de erguer a cabeça. Minha luta não foi em vão, e foi reconhecida por outras mulheres que passaram por situações semelhantes, minha voz serviu de grito e alerta para a sociedade.

Muita gente não sabe que você é parceria de Arlindo em vários sambas, e que sua história nesse universo começou há tempos...

Sou sambista de berço, fui porta-bandeira por 22 anos, sou sambista de direito e de fato. Fui a primeira criança a ter liberação do Juizado de Menores para vir à frente de uma bateria de escola de samba. Era a bateria do Mestre André, criador da paradinha, da Mocidade. Eu tinha 9 anos de idade, era 1979, e vim como rainha de bateria substituindo a lendária Adele Fátima. Com Arlindo, fiz mais de 30 parcerias, entre elas, "A pureza da flor" e "Será que é amor?". Nosso primeiro samba Era uma carta de projeto de vida que fiz para ele no final do ano de 1988 para 1989. Ele botou melodia na carta, virou um partido alto que batizamos de "Medidas provisórias". Com ele doente, fiz, com o Pezinho, o samba "Telepatia". Queria algo tipo Rita Lee, que criou uma história em torno disso, da relação por osmose, por telepatia, por espírito...

Contou numa entrevista que tinha na memória a última transa de vocês, em 17 de março de 2017, e que ela te alimentava. Essa lembrança ainda é fresca?

Não. Ela perdurou por cinco anos e meio. Ficou viva até se diluir quando a mulher começou a renascer dento de mim.

Foram oito anos anos vendo ele naquele estado. Além de tristeza, sentiu alívio com a partida dele?

Com certeza. Eu não aceitava receber um telefonema de alguém me comunicando que Arlindo faleceu, não me permitiria não estar ao lado dele no último suspiro. Abri mão de milhares de outras coisas com medo de acontecer e eu não estar perto. Aconteceu do jeito que eu quis, eu ali na mãozinha dele, dizendo "pare de lutar". Ele voltou três vezes. O monitor ficava todo na linha com um único som. Passavam alguns segundos, ele voltava, e o monitor mexia. Era o sofrimento pelo sofrimento.

Essa última internação foi muito dolorosa. Quando saímos de casa na ambulância, alguma coisa me disse que ele não voltaria mais. Foram muitas internações, mas a primeira em que senti isso. O corpo dele estava muito debilitado. Foram mais de 30 pneumonias, infecções urinárias, quatro embolias pulmonares, muitas intervenções cirúrgicas na cabeça, seis no abdome. No final, estava como traqueostomia, sondas no pulmão, sonda peniana, veia profunda na virilha e no pescoço, máquina de hemodiálise. Muito dolorido de ver, então, foi um descanso. É horrível ver os nossos sofrerem. Antes de fazer a passagem, ele estava com semblante de dor, de sofrimento. Quando fez a passagem, ficou totalmente sereno, relaxado. A minha sensação é de plenitude, de missão cumprida.

Vivia num estado em que não era separada, viúva e nem solteira. Como foi existir nesse limbo?

Não tem estado civil para uma pessoa que vive com o cônjuge em situação de inconsciência definitiva. Cheguei a me informar para criar um estado civil na sociedade, uma lei para esses casos, porque o que eu recebi de mensagem nas redes sociais de pessoas que passam por isso em vários lugares... Ainda vou atrás disso, mas agora não é prioridade, estou religando meu HD.

A sociedade aproveitou para me apedrejar. Os cinco anos e meio em que tive esperança, não passava pela minha cabeça viver que não fosse para ele. A prioridade era ele, e continuou sendo. A partir do momento em que senti a necessidade de abrir meu coração para viver uma nova relação... Eu só tinha 45 anos quando ele teve o AVC. Vim até 50, 51 anos quando me permiti...

Isso depois de ter passado por muita coisa... Seu cabelo caiu, emagreceu 25 kg, engordou outros 30kg...

Tive depressões profundas, meu cabelo caiu inteiro, ficou só o couro cabeludo, emagreci 25kg e depois engordei 30... Ficava num quarto escuro por dias sem tomar banho, escovar os dentes. Era café, água e remédio para dormir. As crianças diziam: "Mãe, você vai morrer e meu pai vai ficar aí". Eu pensava que fosse durar muito mais tempo com Arlindo aqui antes da última internação, esse era meu projeto. Ninguém cuidava dele melhor que eu. Dividi muito com a Flora, mas é diferente olhar e interpretar. Eu sabia se ele estava com dor de ouvido, de dente, se estava com a barriga inchada. Quando ele suava muito, tinha que ver se a glicose estava alta. Tinha a expertise de toda uma vida.

Enfrentou uma tsunami de ataques machistas ao começar a namorar outra pessoa. E ainda inventaram que tinha um caso com o segurança do Arlindo...

Enfrentei o machismo de uma cultura defasada da sociedade. As pessoas dão opinião sobre o que não sabem, não viveram. Tive o auxílio luxuoso da imprensa sensacionalista, que não teve o mínimo pudor. Por trás da informação mal passada, tem família, crianças, uma rede de dor. Quiseram me botar como se eu já traísse o Arlindo com ele saudável. Não traí em momento algum. Fui fiel à minha palavra de amor. O grande amor da minha vida, em tempo e espaço, é Arlindo. Mas não é o único. E estou me permitindo abrir o coração.

Se fosse homem, não teria sido tão atacada. Arlindo, por exemplo, pulou a cerca e teve um filho fora do casamento com você...

No mesmo momento que meu escândalo estourou, o marido de Preta Gil traiu ela com uma pessoa conhecida deles, abandonou a cantora no meio do câncer. E não deram tanta ênfase ao assunto quanto ao meu. Não houve grande escândalo, não vendeu matéria... enquanto a nossa continuou pegando fogo.

O repórter me perguntou se eu estava tendo um caso com o segurança. Expliquei que não, que estava num relacionamento com alguém que tinha conhecido há três anos, com discrição, sem afronta. Eu tinha certeza que não estava errada. Quanto mais me vissem me escondendo, baixando a cabeça para não ser reconhecida, mais daria razão à sociedade, que estava errada. Eu estava com uma base de relacionamento com um homem honesto, maduro, de 40 anos, que não estava de brincadeira, que ia compartilhar comigo meus momentos, um comerciante que tinha disponibilidade de me acompanhar onde eu fosse.

Esse relacionamento deve ter te ajudado muito nesses tempos duros. Ainda está namorando o André Caetano?

Muito, estamos muito juntos, amigos, parceiros. Paro para pensar em como seria sem ele agora nesse momento de dor profunda... Ele chora comigo, foi meu amigo o tempo todo, tive essa sorte. Se nosso relacionamento terminasse hoje, teria valido a pena cada minuto. É uma relação de respeito, cumplicidade, parceria, um homem solteiro que agora está comprometido comigo. Não havia nada que nos impedisse.

Seus filhos estão bem com essa relação? Porque, no começo, deu um ruído, né, ficou aquela fofocada de "pararam de se seguir"...

Estão super bem. Vendo a nossa convivência, as crianças perceberam que André me faz bem, a segurança que fui passando para eles com o dia a dia... Foram vendo a minha postura e a do André. Essa fofocada foi tudo besteira. Meus filhos sofreram com as falácias e maldades e deram aquela bloqueadinha para não ficarem vendo tudo. A gente é entranhado um no outro... E agora tem essa história de que deixamos a nossa cobertura por causa de sei lá o que...

Estava difícil continuar morando lá?

Aquele espaço vazio foi nos deixando incomodados. Passar pelo quarto sem sentir o cheiro do Arlindo, aquele silêncio... Vivíamos com enfermeiro, fisioterapeuta, fonoaudiólogo, o movimento que a casa tinha, o cotidiano... Não dava. Mas, olha, é uma cobertura simples, viu, gente? Compramos na planta para pagar em 30 anos. O Arlindo não é o mais afortunado, nossa construção familiar de patrimônio não foi nada perto do que esse gente louca fala. Sou uma mulher simples, que gosta de comer sardinha e arrotar bacalhau. A gente chega no mundo pelado e, quando sai, usa uma roupa que nem escolheu... Sou uma mulher desprendida, meu luxo não é riqueza, nem arrogância e prepotência.

Também foi criticada pela forma com que comunicava sobre o estado dele. Imagino como era difícil encontrar um equilíbrio entre não expor demais e manter as pessoas informadas sobre o estado de saúde dele...

Muito difícil. Uma coisa é mostrar a vida como ela é e preservar a memória saudável na cabeça daqueles que amam. Mas existem choques. A doença não escolhe com quem vai acontecer, tanto que o nome é 'acidente vascular'. Não tinha como atender todo mundo, precisava tornar público, informar de uma forma bonita, mostrar que ainda tinha beleza, alegria, amor e cuidado. Às vezes, ia de encontro à vaidade, à beleza física. Encontrar o equilíbrio foi muito difícil. Me baseei na minha certeza e no apoio que recebia das pessoas por compartilhar o tratamento dele.

Como está a questão de inventário, herança, direitos autorais?

50% dos direitos são meus. Os outros, divide-se por quatro: três filhos e eu. Viver de direito autoral nesse país, querida... é punk! Não é brincadeira. Não dá para parar de trabalhar e viver de renda, não. Vai ter que ter inventário... O filho do Arlindo pode ter certeza que qualquer pedra, pau, janela que for dele, ele vai levar. Vou pagar o preço da distância que quero dele.

Estendi a mão para ele diante do corpo do Arlindo, numa de perdoar para que o espírito não fosse... "Vamos começar um novo ciclo, quer ser meu amigo, ficar perto da família?", eu disse. E, aí, ele vai para a imprensa dizer que não tem transparência no inventário... Buscando saber se tinha algo para ele.

Arlindo tinha vergonha, lamentava essa situação, não permitia uma aproximação para criar afeto, vínculo. Os amigos todos sabem disso. Depois que o Arlindo ficou doente, fiz um almoço no Dia dos Pais, convidei ele. Depois, vieram outros problemas. Sinto muito.

Não temos grandes heranças, é tão pouco, quase nada. Tudo que temos construímos juntos. Quando começamos a namorar, nem carro Arlindo tinha. Compramos um Passat 1979 que, de tanta corrosão, era como o dos Flintstones (risos).

Como fica a família agora?

Todo mundo pensando junto. Eu e minhas crianças conversamos, trocamos ideias, nos consultamos. Geralmente, a palavra final é a minha. Está todo mundo unido, com talento, dignidade e disposição para trabalhar. Arlindinho diz: "Mãe, por mim, tocava 24 horas por dia. Porque se eu não cantar, eu penso, e, se eu penso, eu choro".