Saúde mental no trabalho merece cuidado constante
A discussão ganha força, para além do Setembro Amarelo, com o PL 4479/24 que obriga empresas com mais de 50 funcionários a implementar ações de promoção da saúde mental
Dores de cabeça, exaustão física e emocional, problemas gastrointestinais e insônia estão entre os sinais de transtornos mentais que podem estar relacionados com o ambiente de trabalho. No geral, a discussão em torno do tema saúde mental só ganha mais destaque durante o Setembro Amarelo. Neste ano, a pauta se antecipou. Antes mesmo do início da campanha, o tema voltou ao centro do debate com a tramitação do Projeto de Lei 4479/24, que inclui problemas emocionais na lista de “riscos ocupacionais”.
A proposta determina que empresas públicas e privadas com mais de 50 funcionários adotem medidas para promover a saúde mental e prevenir transtornos psicológicos e condições de adoecimento mental, como o burnout por exemplo. A medida ainda não está em vigor, explica a advogada trabalhista Anna Carolina Cabral, já que segue em tramitação no Congresso, mas está diretamente relacionada com a Norma Regulamentadora 1 (NR-1) da Segurança e Saúde no Trabalho (SST) no Brasil.
“A NR-1, na sua versão atualizada já passou a exigir das empresas a avaliação e o gerenciamento dos riscos psicossociais dentro dos programas de saúde e segurança no trabalho”, lembrou. O não cumprimento por parte das empresas, em relação a avaliação desses riscos, pode implicar em autuações e multas administrativas decorrentes da fiscalização do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, de acordo com a advogada.
Legislação
O caráter propositivo da legislação, ao reconhecer os riscos psicológicos no ambiente de trabalho, representa um avanço no campo legal. O debate dentro das empresas, no entanto, ainda precisa ir além do laço amarelo que marca o mês de setembro.
Apesar dos avanços na legislação, o número de pessoas que precisaram se afastar do trabalho por transtornos emocionais só aumentou nos últimos dez anos. Em 2014, quase 203 mil apresentaram quadros de depressão, ansiedade ou de estresse no ambiente laboral e necessitando de uma licença da jornada trabalhista. Em 2024, dez anos depois, o número mais que duplicou, passando para mais de 440 mil afastamentos por esse motivo, segundo dados do Ministério da Previdência Social.
Além do já conhecido cenário de pressões excessivas por metas, assédio moral e outras condicionantes, a pandemia e os novos formatos de trabalho intensificaram quadros de ansiedade, lembrou a advogada Anna Carolina.
Burnout
Esse foi o caso da psicóloga Rebecca Brayner, de 37 anos, diagnosticada com transtorno de burnout em março de 2021, segundo ano da pandemia de Covid-19. À época, ela ocupava o cargo de coordenadora de saúde mental no município de Caruaru, um exemplo de que, mesmo em funções voltadas à orientação sobre saúde mental, fatores como excesso de demanda e sobrecarga podem levar ao adoecimento.
“Me sentia cansada, frustrada, tinha rompantes de choro. Esquecia compromissos importantes, apresentava dificuldade em me concentrar em leituras e o mais evidente, meu humor oscilava muito. Me dei conta de que não estava bem e busquei ajuda profissional”, relatou.
De acordo com Rebecca, o burnout mudou sua percepção acerca do trabalho até hoje.
“Sou mais crítica em relação aos processos de trabalho e não permito mais que me roubem o que há de mais precioso pra mim, que é o tempo”, enfatizou.
Rebecca também considera outros fatores para o adoecimento excessivo no ambiente de trabalho, como escalas que não permitem um acompanhamento psicológico recorrente. No momento em que foi diagnosticada, ela precisou se afastar por dois meses do trabalho para cuidar do transtorno.
Sintomas físicos
Segundo a psicóloga clínica e especialista em psicologia organizacional, Flávia Barreto, sintomas de ansiedade, depressão ou burnout podem se manifestar no corpo por meio de sinais físicos. Como foi o caso de Rebecca.
“Dores musculares são comuns, alterações gastrointestinais, crises de choro, dificuldades na área cognitiva, como a memória, a atenção, a concentração e os pensamentos lentificados, podendo evoluir para uma depressão, um transtorno de ansiedade ou um burnout”, afirmou.
Para Flávia, o Setembro Amarelo tem papel fundamental ao abrir espaço para o debate sobre saúde mental no trabalho. Entretanto, ela ressalta que a visibilidade concentrada em um único mês não é suficiente.
“A campanha é de suma importância porque promove discussão e entendimento sobre os fatores que influenciam a saúde mental do trabalhador. A visibilidade sazonal revela que estamos evoluindo, mas é preciso transformar essas ações em políticas permanentes. Afinal, não adoecemos apenas em setembro”, destacou.
Segundo Flávia, cabe às empresas assumir a responsabilidade de adotar medidas contínuas de prevenção e cuidado. “É necessário criar estratégias que funcionem como uma avaliação de 360 graus, enxergando a saúde mental por todos os lados. As companhias precisam compreender que se trata de uma via de mão dupla, que deve ser analisada, estudada e aplicada com metas permanentes e eficazes”, completou.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) define saúde mental no trabalho como um estado de bem-estar em que o indivíduo é capaz de utilizar as suas próprias habilidades, lidar com as tensões normais da vida, trabalhar de forma produtiva e contribuir para a sua comunidade, inclusive para a própria organização. Ou seja, o adoecimento influi diretamente no trabalho exercido pelo indivíduo.
Mente e corpo
De acordo com a psicóloga organizacional e mestre em Saúde mental do trabalhador, Cássia Brito, não há como dissociar mente e corpo: o que acontece em um afeta diretamente o outro.
“O desgaste emocional pode levar à exaustão mental, exigindo mais energia e concentração do cérebro do que o normal, o que resulta em queda de desempenho e perda de produtividade”, explicou.
A especialista destacou que fatores como o ritmo acelerado da vida moderna, crises econômicas e cobranças excessivas contribuem para transformar o emprego em fonte de tormento, aumentando os níveis de estresse entre os trabalhadores.
Embora o trabalho seja essencial para a economia do país, Brito defende que é preciso repensar as condições atuais. Para ela, as empresas devem reavaliar seus processos internos a partir da experiência dos próprios funcionários, ajustando as demandas dos serviços às reais necessidades das pessoas.
Estratégias
Flávia Barreto destaca que as empresas têm um papel central na prevenção de quadros como depressão, ansiedade e burnout. Entre as ações propostas, Flávia cita a realização de programas contínuos, com palestras regulares, rodas de conversa e avaliações individuais conduzidas por profissionais de psicologia, sempre com sigilo.
“O psicólogo pode identificar sinais de sofrimento no comportamento do trabalhador durante essas atividades e encaminhar para um acompanhamento mais próximo”, explicou.
Ela defende ainda medidas práticas, como flexibilização da jornada, pausas para descanso e treinamento de lideranças para reconhecer sinais precoces de adoecimento. Segundo a especialista, é necessária uma cultura organizacional baseada no respeito, na valorização e no feedback construtivo, substituindo práticas autoritárias ainda presentes em algumas empresas.
Debate
Na avaliação da psicóloga Maria Clara Albuquerque, a escuta no ambiente de trabalho é um dos principais fatores que precisam estar presentes no cotidiano organizacional.
“Cada pessoa tem um universo interno único, e falar das próprias angústias faz parte do processo de autoconhecimento. Setembro ajuda a abrir portas, mas a escuta precisa acontecer o ano inteiro, sem datas marcadas”, afirmou.
Maria Clara reconhece que as atividades promovidas no período são importantes por criarem um espaço de discussão, espaço esse que deve permanecer ativo após o fim da campanha.
“É essencial que existam espaços reais de escuta e acolhimento, e não apenas treinamentos pontuais. Algumas medidas fazem diferença, como estimular uma cultura de diálogo em que líderes ouçam sem julgamento, oferecer flexibilidade e equilíbrio entre vida pessoal e profissional, respeitar pausas e limites e incluir apoio psicológico em convênios ou parcerias”, explicou.
De acordo com a psicóloga, ouvir e validar a fala dos trabalhadores é, ainda, um fator essencial para reduzir os riscos de transtornos emocionais.
"Acredito que quando a empresa legitima a fala do sujeito, quando cada pessoa sente que pode falar e ser ouvida, a própria reduz muito o risco de ansiedade, depressão e burnout", acrescentou.