Entre o avanço e os riscos: o limite do uso das telas no aprendizado
Uso de eletrônicos pode tanto potencializar o ensino quanto prejudicar a saúde mental, física e o desenvolvimento cognitivo das crianças
Em uma era dominada por celulares, tablets e computadores, um dilema cresce entre pais, educadores e especialistas: qual o impacto real das telas no desenvolvimento de crianças e adolescentes?
O debate ganhou destaque após o uso massivo de ferramentas digitais durante a pandemia da Covid-19, quando estudantes ampliaram o contato com telas para fins educacionais.
Especialistas apontam que o uso pode tanto potencializar a aprendizagem quanto comprometer a saúde mental, física e o desenvolvimento cognitivo dos usuários. Tudo depende do limite e direcionamento.
Com décadas de atuação na saúde infantil, o médico pediatra Daniel Becker observa de perto a geração que cresce diante das telas. “O uso de ferramentas digitais tem suas vantagens. Abre portais para o conhecimento, simulações, vídeos. A criança pode viajar pelo sistema solar ou pela história”, reconhece.
Porém, o médico alerta para que o raciocínio, a imaginação e a criatividade não deixem de ser estimulados com o uso. Para Becker, a educação não pode abrir mão do analógico. “Não dá para abandonar o livro, o caderno, a caneta e o cérebro”, destaca.
Daniel Becker é enfático ao defender que ferramentas tecnológicas aplicadas para fins de aprendizagem devem ser monitoradas e fornecidas pela instituição de ensino e, quanto ao uso do celular, ele destaca: o equipamento pessoal da criança ou adolescente não deve ser usado.
“Os estudantes vão começar a assistir vídeos, pornografia na sala de aula. Isso é a coisa mais fácil. Fora isso, o mix de digital e analógico, eu acho que pode ser bastante produtivo, sim”, afirmou o pediatra, que é um dos principais incentivadores da Lei nº 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares nas escolas brasileiras no ensino básico. Becker detalha o perfil de uso da atual geração.
“Os danos das telas vêm de certos aplicativos, de certos sites que viciam. Entre os meninos, pornografia e jogos, para as meninas, as redes sociais. Esses devem ser limitados ao máximo e, para isso, tem que ter supervisão parental e educativa, no sentido de ajudar a encontrar um uso melhor do celular. Criança não tem que ter acesso. A tendência do algoritmo é direcionar lixo tóxico”, enfatiza Daniel Becker, que elenca os malefícios do uso excessivo de telas.
“Temos um aumento de TDAH, ansiedade, depressão, síndrome do pânico, automutilação, suicídio, prejuízos cognitivos - na memória e aprendizagem, e comportamentais, como agressividade e irritabilidade por causa do sono. Obesidade, sedentarismo, má formação cardiovascular, problemas posturais. A miopia está aumentando muito, porque as crianças não estão vendo a luz do dia”, ressalta.
Visão
A oftalmologista, coordenadora do setor de Oftalmopediatria da Fundação Altino Ventura, Bruna Borba, aponta que casos de miopia, distúrbio que prejudica a visão à distância, têm sido registrados precocemente em crianças devido ao uso excessivo das telas.
“A miopia tem surgido em idades cada vez mais precoces e com a taxa de progressão mais rápida. Os dois principais fatores de risco são o uso excessivo da visão de perto, que está cada vez mais frequente com os celulares, e tempo insuficiente de exposição em ambientes externos, com exposição indireta à luz solar”, explica a especialista.
Além da miopia, o uso prolongado de telas pode provocar o chamado espasmo de acomodação, uma contração do músculo ocular responsável pelo foco, que pode gerar uma “falsa miopia”. Também há um aumento nos casos de desvios oculares, visão dupla e até síndrome do olho seco.
“São queixas recorrentes ardência, embaçamento momentâneo e piscar excessivo. A criança aperta os olhos para ver de longe, aproxima demais objetos ou reclama de dor de cabeça”, diz Borba, que ensina a regra do 20-20-20 durante o uso de telas.
A cada 20 minutos olhando para uma tela, fazer uma pausa de 20 segundos e focar um objeto a 20 pés de distância, cerca de 6 metros. Segundo a médica oftalmologista, a ação diminui os efeitos do cansaço visual.
“O ideal é optar por telas maiores, à maior distância possível, e evitar o uso em ambientes com pouca iluminação. Os aparelhos devem estar à distância de um braço adulto”, ressalta Bruna.
Vilões
O psicólogo e psicanalista Miguel Gomes destaca que o perigo do uso descontrolado das telas está, principalmente, na passividade e no imediatismo durante o consumo dos conteúdos.
“Os vídeos curtos e jogos provocam uma satisfação instantânea, que dificulta o desenvolvimento da paciência, da concentração e da capacidade de lidar com frustrações”, avalia o especialista.
Gomes reforça que o cyberbullying e a pressão por aprovação, principalmente nas redes sociais, podem fragilizar a saúde mental dos usuários, favorecendo o desenvolvimento de quadros depressivos. Nas crianças, os prejuízos também são nocivos.
“Apresentam atraso na linguagem e dificuldades para expressar sentimentos, o que pode ser confundido com transtornos, como o autismo”, afirma o psicólogo.
Para os pais, o conselho é supervisionar.
“A gente tem que encontrar o caminho para fazer o uso responsável de tela. Não pode fazer de jeito nenhum que as crianças fiquem em celular, videogame ou computador sozinhas, sem supervisão”, alerta o psicólogo.
Avaliação
Para a psicopedagoga especialista em neurodesenvolvimento, Ana Paula Calado, avaliar se o uso das telas está, de fato, favorecendo a aprendizagem dos estudantes é essencial.
“O professor precisa saber como vai medir o impacto daquele recurso digital. O aluno está aprendendo? Está interagindo ou só assistindo passivamente a um conteúdo?”, questiona.
A especialista também destaca que a avaliação deve buscar o protagonismo do estudante, com o uso de quizzes, formulários digitais e tarefas que exijam autoria e engajamento.
“Quando promovemos aulas 100% on-line, deixamos uma carência social e emocional. [...] É preciso ensinar aos nossos neurotransmissores que o uso será equilibrado e que haverá recursos, como livros e materiais impressos”, destaca a psicopedagoga.