O Brasil que nega banheiros também nega dignidade
A violência de gênero no Brasil não é um problema isolado nem restrito às relações interpessoais. É estrutural, atravessa instituições, políticas públicas, o mercado de trabalho e a vida cotidiana das mulheres. E, quando somada a recortes como identidade de gênero e deficiência, a exclusão se intensifica, revelando camadas de opressão que o país insiste em naturalizar (e ignorar).
A aprovação do Projeto de Lei 3363/2024, em Petrópolis, que restringe o uso de banheiros por pessoas trans, é um símbolo cruel desse retrocesso. Trata-se de uma tentativa de institucionalizar a exclusão e legitimar a violência contra uma população historicamente marginalizada. Negar o direito básico ao uso de um banheiro não é apenas uma questão administrativa, mas um ataque direto à dignidade humana, à integridade física, psicológica e ao princípio constitucional da igualdade.
Proibir que a pessoa use o banheiro que corresponde à sua identidade de gênero significa expô-la, deliberadamente, ao constrangimento, à violência psicológica e até física. É condená-la a um espaço público hostil e perigoso. Mais do que isso: é chancelar preconceitos que já produzem índices alarmantes de violência de gênero em nosso país, um dos que mais matam pessoas da comunidade LBBTQIA+s. Para se ter ideia, o Brasil ocupa, há mais de década, o trágico posto de campeão mundial de assassinatos de pessoas trans.
O Dossiê da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontou 122 mortes registradas somente em 2024. A pesquisa aponta que o perfil das vítimas, em sua maioria, é de jovens, pretas, pobres e nordestinas e que a expectativa de vida dessa população é de até 35 anos.
Não se trata apenas de um erro jurídico. O PL 3363/2024 viola princípios constitucionais como a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III) e a igualdade de todos perante a lei (art. 5º). Contraria também decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que reconhecem a identidade de gênero como direito fundamental. Em outras palavras, é inconstitucional.
O impacto, porém, vai além da letra da lei. Essa decisão municipal manda uma mensagem perigosa: a de que a exclusão pode ser legitimada pelo poder público, o que é muito perigoso, pois normaliza a violência simbólica e abre caminho para a violência física. Quando o Estado segrega, o agressor se sente autorizado a agredir. Enquanto a Lei Maria da Penha completa 19 anos sem conseguir proteger plenamente as mulheres cis em um país com quatro feminicídios por dia, o Estado agora avança para tornar ainda mais vulnerável uma população que já enfrenta rejeição familiar, exclusão social e barreiras quase intransponíveis no mercado de trabalho.
Esse tipo de medida ecoa em um cenário já marcado por dados alarmantes. Entre 2013 e 2023, mais de 47 mil mulheres foram assassinadas no Brasil. Só em 2023, 3.603 vidas foram interrompidas, em uma taxa de 3,5 homicídios por 100 mil mulheres. Mulheres negras correm 70% mais risco de serem assassinadas. A violência de gênero também se expressa em dados cotidianos: 37,5% das brasileiras sofreram algum tipo de violência apenas nos últimos 12 meses, sendo a violência psicológica a mais recorrente.
Esses números se tornam ainda mais perversos quando olhamos para grupos específicos. Mulheres trans estão entre as principais vítimas de homicídios motivados por ódio no mundo e o Brasil segue no topo desse ranking vergonhoso. Já as mulheres com deficiência enfrentam violência em índices superiores à média nacional, frequentemente dentro do próprio lar, em contextos de dependência e invisibilidade. Para essas mulheres, o risco não é apenas de exclusão social, mas também de maior vulnerabilidade econômica e institucional.
E há um custo que não pode ser ignorado: o econômico. A violência de gênero, em todas as suas formas, custa bilhões ao Brasil em produtividade perdida, gastos em saúde, segurança e assistência social. Um estudo da Fiemg já estimou que o fim da violência contra mulheres poderia acrescentar mais de R$ 214 bilhões ao PIB em dez anos.
Se o país insiste em legislar para excluir, o preço é pago em vidas interrompidas e em oportunidades desperdiçadas. No caso de mulheres trans e com deficiência, esse impacto é agravado pela exclusão histórica do mercado formal de trabalho, pela dificuldade de acesso a crédito, à educação e até mesmo a direitos básicos de saúde. Mulheres com deficiência enfrentam barreiras físicas, institucionais e culturais para inserção laboral. Some-se a isso a sobrecarga dos cuidados não remunerados (em média, 23 horas semanais para as mulheres, contra 11 horas dos homens) e o resultado é um ciclo de exclusão que se retroalimenta.
É preciso reconhecer que legislações excludentes, como a de Petrópolis, ou a negligência na aplicação de marcos avançados, como a Lei Maria da Penha, perpetuam essa engrenagem. Cada feminicídio, cada exclusão de banheiro, cada barreira invisível imposta no mercado de trabalho não é um acaso, mas consequência de escolhas políticas e sociais que tratam a vida das mulheres como descartáveis.
O caso de Petrópolis não é local. É um alerta nacional. Se esse projeto não for barrado, abre precedente para que outras cidades copiem a fórmula, ampliando a institucionalização da violência e da exclusão. Negar o banheiro é negar humanidade. É o primeiro passo de uma espiral que começa com a segregação e pode terminar no genocídio simbólico de populações inteiras. O Brasil precisa escolher se quer ser um país que garante direitos ou um país que escolhe quem merece viver com dignidade.
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